O testamento
Testamento
No detalhe do testamento, o nome: Francisca da Silva Oliveira (Crédito: Gláucia Rodrigues)

“Aos doze do mês de novembro de mil setecentos e setenta anos e neste sítio de Macaúbas, eu, Francisca da Silva de Oliveira, andando de saúde natural e em meu perfeito juízo e conhecimento, porém temendo a morte como a todas as criaturas e não sabendo a hora em que Deus Nosso Senhor será servido chamar-me para, e desejando claramente dispor dos bens, evitar qualquer prejuízo que possa sobrar a todos ou algum dos meus herdeiros, pedi e roguei a Francisco José de Sales que este meu testamento e última vontade escrevesse e a meu rogo assinou, o qual faço na forma e maneira seguinte.”

Foto do testamento (livro aberto)
O documento foi registrado em papel feito em tramas de linho e algodão (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Com essas palavras, Chica da Silva inicia seu testamento, escrito em 12 de novembro de 1770, no Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Monte Alegre de Macaúbas, em Santa Luzia, região central de Minas Gerais. O documento, em quatro folhas de papel feito em tramas de linho e algodão, foi lavrado e “cerrado com cinco pontos de linha vermelha e outros tantos pingos de lacre da mesma”, sendo reaberto quase 26 anos depois, com a morte dela, em 15 de fevereiro de 1796, no Arraial do Tejuco.

“Em primeiro lugar, encomendo e entrego a minha Alma à Santíssima Trindade que a criou, a Jesus Cristo que a remiu com seu precioso Sangue, ao Santo do meu nome, ao Anjo da minha guarda e a todos os Santos e Santas da Corte do Céu a quem invoco e clamo por meus interesses e advogados protestando que cumprisse na Santa Fé e Lei e que ensina a Igreja Católica Romana, nossa Mãe, e que nela espero morrer e salvar-me como verdadeira e fiel Cristã.”

Chica da Silva Páginas 1 e 2
O testamento foi reaberto com a morte de Chica da Silva, em 15 de fevereiro de 1796 (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Casa da Chica da Silva
O vilarejo de Milho Verde, pertencente ao Serro (Crédito: Acayauã Bié)
Fragmentos de uma vida

Nas linhas traçadas ali, Chica da Silva revela, além da religiosidade, vários aspectos de sua vida que já haviam sido identificados por sua biógrafa, a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e historiadora Júnia Furtado. A ex-escravizada declara ser filha natural de Maria da Costa e Antônio Caetano de Sá e afirma ter nascido em Milho Verde e ter sido batizada na Capela de Nossa Senhora dos Prazeres, no mesmo arraial.

“Declaro que nunca fui casada e que tenho quatorze filhos naturais, a saber cinco machos e nove fêmeas que iam por nome Simão, filho do Doutor Manoel Pires Sardinha, João, José, Joaquim, Antônio, Francisca, Rita, Anna, Elena, Luzia, Maria, Quitéria, Marianna, Antônia, todos filhos do Desembargador João Fernandes de Oliveira; nomeio e instituo e é de minha vontade nomear e instituir conforme devo de Justiça por universais herdeiros de todos os meus bens.”

O documento confirma a relação estável, duradoura e pública que Chica da Silva manteve com o desembargador da coroa portuguesa João Fernandes, uma vez que consta, em suas primeiras páginas, a nomeação dos 13 filhos, frutos desse relacionamento. Ali aparece, como seu testamenteiro, José Agostinho de Oliveira, filho mais novo do casal, a quem caberia assim a responsabilidade de garantir que a vontade da mãe fosse respeitada, após sua morte.

A Igreja de São Francisco de Assis, onde Chica da Silva pediu para ser sepultada (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Francisca da Silva registra no testamento onde gostaria de ser sepultada, caso morresse no Arraial do Tejuco: na Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco. “Não estando esta acabada ou havendo algum impedimento, na capela de Santo Antônio do mesmo Arraial, defronte da Capela do Senhor dos Passos”, completa.

E assim foi feito. Nos assoalhos do interior da Igreja de São Francisco de Assis, uma das quatro irmandades à qual ela pertencia, Francisca foi enterrada, como confirma Luana Martins Oliveira, membro e secretária da Ordem. “Ela era muito respeitada e ativa na confraria, tendo sido responsável por importantes doações para a irmandade. Isso permitiu que ela fosse enterrada ali”, afirma.

Luana Martins explica que, no final do século XIX, devido a normas sanitárias e a uma visão higienista que imperou à época, os restos mortais foram retirados de dentro da igreja e transferidos para um cemitério vertical, ao lado igreja, mas ainda no interior da estrutura do templo, onde hoje se encontram.

O corpo de Chica foi sepultado nos assoalhos da igreja; depois, transferido para cemitério vertical (Crédito: Gláucia Rodrigues)

“Acompanharão meu corpo à sepultura o Pároco e todos os mais sacerdotes que se acharem no Lugar do meu falecimento e os mesmos dirão Missa de corpo presente por minha Alma e me farão um ofício também de corpo presente, aos quais lhe dará a esmola costumada e não podendo fazer-se o dito ofício no dia próprio do meu falecimento, digo do meu enterramento, por ser ocupado em alguma festa ou solenidade, será este no dia terceiro ou no primeiro que houver desimpedido.”

Casa da Chica da Silva
A casa onde Chica e o contratador passavam temporadas, em Macaúbas, é contígua ao recolhimento (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Acerto de contas

De acordo com o professor Eduardo França Paiva, autor, entre outros, do livro “Escravos e libertos nas Minas Gerais: estratégias de resistência através dos testamentos”, esses documentos são uma das fontes mais ricas sobre o universo do cotidiano das pessoas daquele período, propiciando informações diretas ou nas entrelinhas sobre aquela sociedade, guardando histórias que ficaram ocultas durante séculos.

“O testamento é um documento oficial, então ele tem todas as partes protocolares, mas ele mistura também os aspectos do cotidiano das pessoas. E ele não é feito apenas para registrar o que se tem e o que não se tem: ele é também uma ponte entre a vida terrena e a vida espiritual que, no pensar cristão, é a vida de verdade. Com isso, ele é usado para garantir a salvação daquela pessoa”, explica o historiador Eduardo França.

Dessa maneira, além de uma manifestação de vontade dirigida aos homens, o testamento é construído como se fosse também uma declaração a Deus. “As pessoas mostram arrependimento pelos pecados, deixam os legados pios e tentam mostrar que merecem ter a alma salva. Naquela época, isso fazia todo o sentido, porque elas acreditavam na redenção e na danação”, esclarece. Assim, Chica da Silva, após declarar seu local de nascimento, filiação, descendência e já traçar um primeiro desejo após sua morte — como deveria ser o seu sepultamento —, inicia manifestações de caridade e devoção.

“Acompanharão também o meu Corpo todas as Irmandades que houver na paragem onde acontecer meu falecimento e a cada uma delas lhe dará a esmola de vinte oitavas para que se diga cem missas por minha alma, quatrocentos mil reis, a que a Lei Novíssima de Sua Majestade se me permite, ou por esmolas e Legados. Peço: As quais missas serão ditas no Distrito da Freguesia onde o meu falecimento for, no tempo mais breve que puder, dando-se a esmola que aí praticar e for costume.”

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Detalhes do altar da Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)

O testamento revela ainda uma mãe preocupada em ser justa na divisão dos bens entre seus filhos e, ao contrário do que foi decantado em narrativas posteriores sobre a vida dela, comprova que Chica da Silva não ficou desassistida financeiramente quando o contratador de diamantes partiu para Portugal para resolver questões relacionadas à herança deixada pelo pai. Entre os bens que lista, estão joias, peças com diamantes, ouro, casas e um significativo número de escravizados.

Confrontando datas, verifica-se que Chica da Silva faz o testamento no contexto da viagem de João Fernandes de Oliveira para Lisboa, e que ela já havia se despedido do companheiro no momento em que o texto é ditado, pois o documento escrito em Macaúbas é datado de 12 de novembro de 1770, e nele Francisca faz referência à partida do contratador de diamantes para Portugal.

Apenas 16 dias depois, em 28 de novembro, estando em Vila Rica, é o companheiro dela quem faz o próprio testamento, no qual reconhece todos os filhos. De lá, ele possivelmente seguiu viagem para o Rio de Janeiro, onde há registros de que ele estivesse presente já em 6 de dezembro. Em 24 de dezembro, tendo em vista documentos analisados pela professora Júnia Furtado, ele parte rumo a Lisboa, de onde não conseguirá voltar — a disputa da herança do pai com a madrasta se arrasta por alguns anos e ele acaba falecendo, em 1779, sem reencontrar Chica da Silva.

Imagem da Casa da Chica em Macaúbas ao lado do recolhimento
Ao contratador é atribuída a construção de uma pequena capela localizada dentro do mosteiro (Crédito: Gláucia Rodrigues)

“Quero que todos os meus filhos e filhas nomeados entrem igualmente e sem diferença alguma na Repartição de todos os meus bens que a esse tempo forem (...) Como a maior parte dos meus bens consiste em escravos, se algum dos meus herdeiros quiser receber na mesma espécie a parte que lhe tocar (...) Declaro que todo o ouro lavrado que se achar por meu falecimento em joias e peças com diamantes ou sem eles, pertença única e privativamente às ditas minhas filhas, por lhes assim ter sido dado por seu pai, o dito desembargador João Fernandes de Oliveira, antes de passar para Portugal. Às mesmas ditas minhas Filhas, deixo também o ouro lavrado do meu uso, como justamente o por o fazer (...)”

É possível observar um cuidado especial dela para com Simão Pires Sardinha, o único filho dela que não descende do contratador de diamantes e que, portanto, não herdaria os bens de João Fernandes. Assim, Chica da Silva deixa a Simão, no testamento, além do que lega igualmente a todos os herdeiros, uma morada de casas situada à Rua do Rosário, no Arraial do Tejuco, “defronte das casas de Dona Francisca Antunes, no caso de que, ao tempo do meu falecimento, não lhe tenha já feita a doação dela para seu patrimônio”.

Foto 1
Nas linhas traçadas no documento, são revelados vários aspectos da vida de Chica da Silva (Crédito: Gláucia Rodrigues)

“Declaro que, se ao tempo do meu falecimento, existir ainda na mão do Tenente Coronel Ventura Fernandes de Oliveira certa quantia de mil cruzados, de que passou Recibo e parando em meu poder desse dinheiro, pertencem Líquidos ao dito meu filho Simão Pires Sardinha seis mil cruzados, procedidos dos Rendimentos dos escravos que lhe foram deixados por seu pai, o dito Doutor Manoel Pires Sardinha.”

Simão, como ela indica no testamento, era filho do médico português Manuel Pires Sardinha, que comprou Chica da Silva, em data desconhecida, do liberto Domingo da Costa, proprietário da senzala onde ela nasceu. Manuel teve filhos também com duas outras escravizadas, e não reconheceu Simão no registro de batismo do menino, mas o alforriou na pia batismal e, em seu testamento, deixou bens para ele.

“Declaro que a dita minha Mãe, Maria da Costa, por estar muito pobre, tenho a assistido até o presente, e é minha intenção [a] assistir para o futuro com tudo o que lhe for preciso para o seu sustento e vestuário, e assim, no caso dela sobreviver ao tempo do meu falecimento, é minha vontade que os meus testamenteiros da minha terça lhe deem, por uma vez somente, trezentas oitavas de ouro, cuja quantia não bastando e continuando-lhe Deus a vida por mais anos, recomendo a todos os meus filhos e filhas, pela minha bênção e pela de Jesus Cristo, lhe continuem a mesma assistência, como eu o faria do necessário para a sua sustentação e que, assim mais, que uma escrava, por nome Quitéria, que lhe dei para a servir em sua vida, lhe não seja tirada e não somente depois da sua morte.”

O testamento revela também a filha que Chica da Silva foi, ao buscar garantir a assistência à mãe após seu falecimento. Há ainda a partilha das roupas que ela usava: “que não puder servir para o uso de minhas filhas (...) que espero em Deus se achem todas no Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, quero que sejam distribuídas e dadas às minhas sobrinhas, as mais pobres (...)”.

Foto capa do livro de testamento
 Livro de Registro de Testamento de número 35, de cartório da cidade do Serro (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Livro de testamento 35
O documento será restaurado pela Mejud e disponibilizado para a coletividade (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Esse documento tão importante para esclarecer e confirmar pontos da vida de Francisca da Silva foi localizado no Fórum da Comarca do Serro pelo tabelião João Bosco de Moura e Silva, com a ajuda da professora e historiadora Maria Erenita de Souza, em meados da década de 1980. “Maria Erenita tinha um conhecimento muito grande da vida da Chica da Silva. E sabia a data de falecimento dela; com essa informação, fui buscando nos livros o documento”, conta João Bosco.

O trabalho era exaustivo, porque a escrita antiga exigia o domínio ao menos rudimentar da paleografia e os papéis estavam bastante deteriorados pelo tempo. Mas, em um documento do Livro de Registro de Testamento de número 35, sobressaiu um nome: “Estava assinado Francisca da Silva Oliveira; essa assinatura nós conseguimos identificar bem. Com dificuldade, li alguma coisa, com a ajuda da professora Maria Eremita”, lembra.

Segundo o tabelião, durante anos, o testamento permaneceu à disposição das pessoas que iam até lá para consultar os papéis. “Eu mostrava o livro, mas não deixava que ele saísse do cartório”, lembra. Com o tempo, contudo, ele ficou com receio de o testamento de Chica da Silva ser extraviado, dado o seu grande valor histórico e ao fato de ser muito cobiçado. Assim, na condição de tabelião do cartório e guardião do acervo, ele tomou a decisão de guardá-lo em um cofre em sua casa.

Foto João Bosco tabelião, na porta do cartório do Serro
O tabelião João Bosco localizou o documento, com a ajuda da profª. Maria Erenita de Souza (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Restauração e preservação

Alguns anos depois, o tabelião João Bosco entregou o documento à juíza auxiliar de Belo Horizonte Lívia Borba, que, na ocasião, era titular na Comarca do Serro. De imediato, ela o remeteu à Memória do Judiciário Mineiro do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Mejud/TJMG), para que pudesse ser preservado, restaurado e disponibilizado para a coletividade.

“Trata-se de um documento bastante relevante para a história mineira e nacional e para que sejam traçadas as linhas bibliográficas dessa mulher, que foi escravizada e viveu no século XVIII na região do antigo Arraial do Tejuco. A peça será agora restaurada. Posteriormente, ele será disponibilizado para consulta a todos os interessados”, afirma o presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargador Luiz Carlos de Azevedo Corrêa Junior.

Ao restaurar o testamento de Chica da Silva, a Mejud cumpre um dos seus objetivos centrais: proteger os acervos históricos do Poder Judiciário do Estado e franquear o acesso deles à sociedade. “Assim também foi feito com a Carta de Alforria de Chica da Silva. O manuscrito de liberdade e o testamento serão certamente dois dos objetos museológicos de mais destaque do acervo da Mejud”, ressalta o desembargador Oliveira Firmo, superintendente da Mejud.

Casa da Chica da Silva
As escadarias da Igreja de Santa Rita, cartão postal do Serro (Crédito: Gláucia Rodrigues)

A juíza Lívia Borba espera que a recuperação do documento guie pesquisadores “na descoberta da inteligência e da perspicácia da Chica da Silva, que muitas vezes é suplantada pela ideia de que foi uma mulher promíscua, cruel, como frequentemente foi retratada, embora estudos indiquem que ela não era assim”.

De qualquer maneira, como escreveu em seu livro a historiadora Júnia, “a multiplicidade dos significados de uma vida” não são alcançados por biografias, por mais que estas se debrucem sob um vasto conjunto de documentos e bibliografias. “O tempo da biografia é fragmentado, como o da história, caracterizado por contradições e paradoxos”, declara.

Janela para o século XVIII
Foto janelas que se abrem para Diamantina
Um recorte da cidade de Diamantina, com a Serra do Espinhaço ao fundo (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Para além de retalhos de existências individuais, as jornadas empreendidas pelos personagens do passado são capazes também de lançar luz sobre a sociedade em que viveram. Suas vidas são como portais, que abrem frestas para horizontes encobertos pelas brumas do tempo. Para a historiadora Júnia Furtado, Chica da Silva e João Fernandes são uma janela que descortina o antigo Arraial do Tejuco, e a partir da qual é possível compreender o século XVIII em Minas Gerais.

“Eles representam dois tipos sociais clássicos do período. De um lado, temos esses homens brancos, filhos de famílias pobres, geralmente do norte de Portugal, descendentes de agricultores, que vêm ao Brasil fazer riqueza. Naquela época, só o filho mais velho herdava a terra em Portugal — era o que as famílias faziam, para impedir muita divisão das áreas. Assim, vão sendo criados mecanismos para compensar os outros filhos”, explica.

Essa compensação será feita por meio do investimento na educação do segundo herdeiro, para que ele possa se dedicar a atividades comerciais. O pai de João Fernandes, natural da província do Minho (Portugal), tem capital intelectual e entra no negócio de diamantes — ele é o primeiro contratador. Em determinado momento de sua trajetória, ele se casa com uma viúva paulista de muitas posses e segue acumulando riqueza.

Arraial do Tejuco com mercado velho ou mercado dos Tropeiro
O antigo Mercado dos Tropeiros, em Diamantina, construído no século XIX (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Como era natural entre a elite e a aristocracia à época, o patriarca manda o filho homônimo para estudar na Universidade de Coimbra, em Portugal, a fim de que ele adquirisse um título universitário — que era também uma forma de enobrecimento —, e o prepara para a carreira jurídica mais promissora naquele período: o Direito Canônico.

O companheiro de Chica da Silva ganhará ainda o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, comprado pelo pai, e, assim, ele se torna um nobre. Aos 24 anos, é designado desembargador do Tribunal do Porto, e nessa condição ele segue para a Província de Minas Gerais, a fim de assumir a administração do quarto contrato de diamantes, tendo o genitor como sócio.

No Arraial do Tejuco, ele faz fortuna, como ocorreu, de acordo com a historiadora Júnia Furtado, com vários homens brancos na época, que se beneficiaram das oportunidades oferecidas por aquele mundo a ser desbravado.

Praça do Mercado Antigo
A Praça Barão do Guaicuí, em Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Tipos clássicos

“De outro lado, há as escravas e as forras, outro tipo social clássico, e Chica da Silva é bem representativa dele. Muitas escravas participavam do mercado de relacionamento com homens brancos, uma vez que as brancas eram muito poucas. Dessas relações, surge uma descendência ilegítima enorme, que vai se branquear ao longo da próxima geração”, explica Júnia Furtado.

No caso de Chica da Silva, o que a destoa das demais escravizadas, ressalta a pesquisadora, é o fato de ela ter sido alforriada pelo proprietário — o mais comum era que essas mulheres se auto alforriassem. Sobressai também o fato de que ela vai viver com o homem mais rico do império português no século XVIII e a velocidade com que o relacionamento se iniciou: cerca de quatro meses após ela ter sido comprada, denotando que, desde o início, João Fernandes talvez tivesse essa intenção.

Pequena África

A pesquisadora Júnia Furtado chama o Tejuco de “A Pequena África”, porque, em suas pesquisas sobre mulheres forras, ela encontrou um censo de 1774, que só abrangeu pessoas livres indicando, diz a professora, que no arraial, onde viviam aproximadamente 5 mil pessoas, “cerca de 50% dos domicílios eram chefiados ‘por mulheres de cor’, a maioria delas africanas. E muitos desses lares tinham descendência mestiçada”.

Esse dado, na avaliação do professor da UFMG e pesquisador Eduardo França Paiva, coincide com algo que se verifica hoje entre famílias que vivem nas periferias dos grandes centros. “Aquilo que o IBGE descobre no Brasil, há 30/40 anos — que há uma grande quantidade de mulheres que são chefes de família —, isso sempre existiu. Chamamos de matrifocalidade: a mãe como centro do núcleo familiar”, frisa.

Esse contexto, observa o professor, além de ser muito frequente, faz com que haja uma relação proporcional direta entre mobilidade, oportunidades de alforrias e mesclas biológicas e culturais. “Isso aumenta as dinâmicas de mestiçagens que marcam profundamente o que somos hoje. Nós derivamos diretamente de todo esse processo”, pontua.

Júnia Furtado quadro mapas e igreja ao fundo
Para Júnia Furtado, Chica e o contratador são tipos clássicos das Minas Gerais do século XVIII (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Várias “Franciscas”

Eduardo França julga ser necessário comparar Chica da Silva a um grande número de mulheres — pretas, crioulas e mestiçadas — que ascendem economicamente e socialmente, tornam-se senhoras de escravos e acumulam fortuna no século XVIII. “São muitas as ‘Chicas da Silva’; ela foi apenas a mais conhecida, mas houve muitas que mudaram seus destinos”, diz.

De acordo com o historiador, muitas dessas forras provavelmente possuíram mais autonomia política que Francisca da Silva, porque não dependiam dos companheiros: a maioria ascendeu por esforços próprios. “Há uma expressão muito usada por elas nesse período; em seus testamentos, ao se referirem ao que conquistaram, elas diziam: ‘por meu trabalho, serviço e indústria’, pontuando exatamente essa autonomia”, observa.

Na avaliação de Eduardo França, Chica da Silva foi uma mulher perspicaz como tantas daquele período. “A leitura que as mulheres fazem dessa realidade é impressionante; elas interpretam o cenário, constroem, empreendem. Por isso, elas serão em menor número entre os escravos, mas em maior número entre os libertos”, ressalta.

Eduardo França
Eduardo França destaca as redes de solidariedade e de sociabilidade femininas  (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Ousadia e perspicácia

Autor do livro “Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos, crioulos e mestiçados nas Minas Gerais, 1716-1789”, Eduardo França conta que as forras e as suas descendentes livres são as responsáveis, em grande medida, à época, pelo consumo de tecido de algodão estampado fabricado na Índia portuguesa, ao gosto do mercado brasileiro, para atendê-las.

“Assim, sem saírem dos seus arraiais, elas moviam redes comerciais intercontinentais, pois elas consumiam aqui boa parte da pauta comercial que existia no mundo naquele momento. Um exemplo disso é o fato de que elas tinham quase que o monopólio do uso dos corais vermelhos, e havia toda uma indústria joalheira para abastecer o interesse delas. Elas faziam parte de uma rede comercial global, por isso eu as chamo de mulheres globais — e Chica da Silva seria uma delas”, enfatiza o historiador.

O professor destaca que, naquela sociedade, às mulheres era legado um papel secundário ou mesmo terciário. “Elas serviam principalmente para reproduzir e, no caso das brancas, para organizar o universo da casa. Mas não era isso que as negras, crioulas, mulatas e pardas entendiam, e é exatamente por isso que elas foram ousadas e perspicazes: elas liam essa realidade e as oportunidades que o contexto lhes oferecia”, afirma Eduardo França.

Mulher forra - A free black girl
Crédito: Eduard Hildebrandt Acervo de Iconografia Instituto Moreira Sales
Redes de solidariedade

O professor, doutor em História pela USP, afirma que, depois de 40 anos de pesquisa, adquiriu uma compreensão mais ampla também acerca das redes de solidariedade e de sociabilidade femininas, passadas de geração para geração, conformadas por “africanas, crioulas ou mestiçadas, que deixavam a escravidão, tornando-se forras e senhoras de escravos, constituindo redes de relacionamentos que as incluíam, assim como seus descendentes e protegidos, suas escravas e suas ex-escravas”.

“Aquilo que a senhora forra passou para se libertar, ela transmitia para suas escravas — às vezes, para os escravos também, mas essas mulheres costumavam ter mais escravas que escravos. Nos testamentos, vemos as senhoras dando alforrias ou então o regime de coartação para as escravas, deixando a casa para que pudessem viver, legando instrumentos de trabalho para que pagassem por suas liberdades, deixando roupas, joias, rosários”, conta.

Ilustração de escravizadas nas Minas Gerais no século XVIII
Crédito:  Henry Chanberlain - Acervo Pinacoteca
Honra da descendência
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Maria Amadora dos Santos, da quarta geração, em destaque e com alguns descendentes (Crédito: Reprodução de arquivo pessoal)

Luciana Parisi é da sétima geração de descendentes de Chica da Silva e João Fernandes. Mas ela só descobriu essa ascendência quando tinha cerca de 40 anos de idade, pois só então a mãe dela lhe contou o fato. “Parecia um segredo”, disse. A comprovação veio alguns anos mais tarde quando, por uma coincidência do destino, a filha de Luciana tornou-se aluna da professora Júnia Furtado, biógrafa de Chica da Silva. Examinando a árvore genealógica da personagem histórica, a pesquisadora confirmou a informação.

O ramo do qual Luciana descende vem da filha de Chica da Silva chamada Rita Quitéria, que deu à luz a Frutuosa Batista de Oliveira. A dúvida sobre a ascendência pairava porque a neta de Chica da Silva teve apenas um filho adotivo no casamento oficial. Contudo, Frutuosa se separou do marido e teve outros cinco filhos biológicos: um deles é Franklin Amador dos Santos, bisavô de Luciana.

Moradora da capital mineira, Luciana se tornou uma estudiosa da vida de Chica da Silva e se apaixonou pela história da heptavó. O mesmo sentimento de orgulho é compartilhado por muitas de suas primas, que descendem do mesmo tronco, e que ainda vivem na região de Diamantina. “Quando fiquei sabendo da nossa descendência, eu senti muita alegria e emoção. Para mim, é uma honra”, declara Aralúcia Leão Mengardo, tendo ao lado a filha Mayra Leão Rocha — a oitava geração.

Uma das irmãs de Aralúcia, Maria das Graças, acrescenta: “Sempre admirei Chica da Silva. Ela enfrentou a sociedade daquela época e quebrou barreiras; foi guerreira e é uma vencedora”, diz. Para Maria das Graças, em cujas veias também corre o sangue de Francisca da Silva Oliveira, a história de Chica “é linda”: “É uma das histórias mais bonitas que eu conheço, e com personagens que viveram em Diamantina”.

O que Chica da Silva representa, como lembra Júnia Furtado, é um tipo social clássico, que precisa ser exaltado: “mulheres anônimas, africanas, desterradas da África, trazidas à força para o Brasil, que conseguem construir o mundo delas nas Minas Gerais”.

Fotos das descendentes da Chica da Silva em Diamantina
Algumas das descendentes de Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira, em Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Reviravoltas do destino

Ainda nos dias de hoje, vê-se, em Milho Verde, os resquícios de uma velha senzala, abandonada. Segundo um dos mais antigos moradores da região, Ivo Silvério da Rocha, o Mestre Ivo, manancial da memória oral dos escravizados que viveram na região, havia muitas “grandes senzalas” nas proximidades. Daquele passado, entre outras marcas, ficaram também os quilombos de Baú e Ausente, localizados a poucos quilômetros do distrito.

Mestre Ivo conheceu “ventres livres”, pessoas que foram beneficiadas pela lei que decretava que os filhos de escravizadas nascidos a partir de 1871 seriam considerados livres. Aos 81 anos, ele tem orgulho profundo dos povos e das tradições de onde descende, esforçando-se para preservar a cultura catopê, da qual é um dos guardiões. O lavrador é referência em vissungos, os cantos africanos que os escravizados cantavam nas lavras de diamantes e em outras atividades do cotidiano.

Mestre Ivo
Mestre Ivo, em Milho Verde: manancial da memória oral de escravizados que viveram na região (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Embora guarde muitas histórias sobre escravizados, em relação à personagem Chica da Silva, ele diz, com alguma desconfiança: “Disseram que ela é daqui...”. Ao saber que o testamento dela foi localizado, comprovando o fato, Mestre Ivo se diz admirado de saber que Milho Verde foi de fato o palco do início de uma história que tem ares de contos de fada: a menina escravizada que, numa reviravolta do destino, viveu uma relação pública, estável e duradoura com um dos súditos mais ricos do Rei de Portugal, nos anos 1700.

Documentário "Chica da Silva - A Descoberta do Testamento"

"Chica da Silva - A Descoberta do Testamento" é um passeio de 50 minutos pela vida de uma mulher escravizada, que enfrentou o racismo e o machismo para se impor na sociedade conservadora da época.

EXPEDIENTE
REPORTAGEM e EDIÇÃO: Daniele Hostalácio
FOTOGRAFIA: Gláucia Rodrigues
DESIGNER GRÁFICO e ILUSTRAÇÃO: Pedro Moreira
EDIÇÃO DE WEB: Danilo Pereira
REVISÃO DE TEXTO: Manuela Ribeiro e Mariana Maia
Bom Sucesso
Região de Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)