Detalhes do altar da Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)
O testamento revela ainda uma mãe preocupada em ser justa na divisão dos bens entre seus filhos e, ao contrário do que foi decantado em narrativas posteriores sobre a vida dela, comprova que Chica da Silva não ficou desassistida financeiramente quando o contratador de diamantes partiu para Portugal para resolver questões relacionadas à herança deixada pelo pai. Entre os bens que lista, estão joias, peças com diamantes, ouro, casas e um significativo número de escravizados.
Confrontando datas, verifica-se que Chica da Silva faz o testamento no contexto da viagem de João Fernandes de Oliveira para Lisboa, e que ela já havia se despedido do companheiro no momento em que o texto é ditado, pois o documento escrito em Macaúbas é datado de 12 de novembro de 1770, e nele Francisca faz referência à partida do contratador de diamantes para Portugal.
Apenas 16 dias depois, em 28 de novembro, estando em Vila Rica, é o companheiro dela quem faz o próprio testamento, no qual reconhece todos os filhos. De lá, ele possivelmente seguiu viagem para o Rio de Janeiro, onde há registros de que ele estivesse presente já em 6 de dezembro. Em 24 de dezembro, tendo em vista documentos analisados pela professora Júnia Furtado, ele parte rumo a Lisboa, de onde não conseguirá voltar — a disputa da herança do pai com a madrasta se arrasta por alguns anos e ele acaba falecendo, em 1779, sem reencontrar Chica da Silva.
Ao contratador é atribuída a construção de uma pequena capela localizada dentro do mosteiro (Crédito: Gláucia Rodrigues)
“Quero que todos os meus filhos e filhas nomeados entrem igualmente e sem diferença alguma na Repartição de todos os meus bens que a esse tempo forem (...) Como a maior parte dos meus bens consiste em escravos, se algum dos meus herdeiros quiser receber na mesma espécie a parte que lhe tocar (...) Declaro que todo o ouro lavrado que se achar por meu falecimento em joias e peças com diamantes ou sem eles, pertença única e privativamente às ditas minhas filhas, por lhes assim ter sido dado por seu pai, o dito desembargador João Fernandes de Oliveira, antes de passar para Portugal. Às mesmas ditas minhas Filhas, deixo também o ouro lavrado do meu uso, como justamente o por o fazer (...)”
É possível observar um cuidado especial dela para com Simão Pires Sardinha, o único filho dela que não descende do contratador de diamantes e que, portanto, não herdaria os bens de João Fernandes. Assim, Chica da Silva deixa a Simão, no testamento, além do que lega igualmente a todos os herdeiros, uma morada de casas situada à Rua do Rosário, no Arraial do Tejuco, “defronte das casas de Dona Francisca Antunes, no caso de que, ao tempo do meu falecimento, não lhe tenha já feita a doação dela para seu patrimônio”.
Nas linhas traçadas no documento, são revelados vários aspectos da vida de Chica da Silva (Crédito: Gláucia Rodrigues)
“Declaro que, se ao tempo do meu falecimento, existir ainda na mão do Tenente Coronel Ventura Fernandes de Oliveira certa quantia de mil cruzados, de que passou Recibo e parando em meu poder desse dinheiro, pertencem Líquidos ao dito meu filho Simão Pires Sardinha seis mil cruzados, procedidos dos Rendimentos dos escravos que lhe foram deixados por seu pai, o dito Doutor Manoel Pires Sardinha.”
Simão, como ela indica no testamento, era filho do médico português Manuel Pires Sardinha, que comprou Chica da Silva, em data desconhecida, do liberto Domingo da Costa, proprietário da senzala onde ela nasceu. Manuel teve filhos também com duas outras escravizadas, e não reconheceu Simão no registro de batismo do menino, mas o alforriou na pia batismal e, em seu testamento, deixou bens para ele.
“Declaro que a dita minha Mãe, Maria da Costa, por estar muito pobre, tenho a assistido até o presente, e é minha intenção [a] assistir para o futuro com tudo o que lhe for preciso para o seu sustento e vestuário, e assim, no caso dela sobreviver ao tempo do meu falecimento, é minha vontade que os meus testamenteiros da minha terça lhe deem, por uma vez somente, trezentas oitavas de ouro, cuja quantia não bastando e continuando-lhe Deus a vida por mais anos, recomendo a todos os meus filhos e filhas, pela minha bênção e pela de Jesus Cristo, lhe continuem a mesma assistência, como eu o faria do necessário para a sua sustentação e que, assim mais, que uma escrava, por nome Quitéria, que lhe dei para a servir em sua vida, lhe não seja tirada e não somente depois da sua morte.”
O testamento revela também a filha que Chica da Silva foi, ao buscar garantir a assistência à mãe após seu falecimento. Há ainda a partilha das roupas que ela usava: “que não puder servir para o uso de minhas filhas (...) que espero em Deus se achem todas no Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, quero que sejam distribuídas e dadas às minhas sobrinhas, as mais pobres (...)”.