Desconstrução do mito

“O edifício do recolhimento se destacava na paisagem verde, encimado numa colina, com seu perfil adornado por macaúbas, palmeiras de frutos comestíveis e flores perfumadas. Lugar isolado, cercado por muros, dava mesmo a sensação de recato. Lá eram ensinadas a virtude, a obediência, a simplicidade, preparando-se as internas para serem freiras. Elas cantavam em coro um repertório de cantochão gregoriano, aprendiam as primeiras letras, bordados, rendas e costuras e podiam manter aias a seu serviço. As moças usavam o hábito de Nossa Senhora da Conceição e adotavam uma vida reclusa, austera, dedicada a preces.”

Assim a escritora cearense Ana Miranda, que se destaca por seu trabalho no gênero das biografias e dos romances históricos, descreve, em seu livro “Xica da Silva, a Cinderela Negra”, o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Monte Alegre de Macaúbas, em Santa Luzia, e a rotina das moças que ali viviam, no século XVIII.

O local — hoje o imponente e sóbrio Mosteiro de Macaúbas, que resiste ao passar dos séculos — tem um significado especial na história de Francisca da Silva Oliveira. No educandário, viveram como internas suas nove filhas, enviadas para lá a fim de se prepararem para uma existência virtuosa e assim conquistarem bons casamentos ou se dedicarem à vida religiosa.

A presença de Chica da Silva no estabelecimento era frequente — ela e o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem viveu em concubinato por 17 anos, passavam temporadas ali, visitando as filhas. Por isso, o casal mandou construir ao lado do recolhimento uma casa. E foi nesta residência que, em 12 de novembro de 1770, Francisca da Silva ditou seu testamento.

Visitantes na Casa da Chica da Silva
O Recolhimento de Monte Alegre de Macaúbas, em Santa Luzia (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Reconstituindo os passos

Quando iniciou seus estudos sobre Chica da Silva, a professora da Universidade Federal de Minas Gerais e doutora pela USP, Júnia Ferreira Furtado, pensou que a personagem era um mito. Mas, para sua surpresa, ainda em seu primeiro dia de pesquisas, ela localizou o registro de batismo de todos os filhos de Chica da Silva.

Empolgada com a descoberta, como um arqueólogo que em suas escavações descobre vestígios de uma civilização extinta, a pesquisadora decidiu mergulhar na história da escravizada forra, buscando documentos e bibliografia no Brasil e em Portugal, a fim de reconstituir aspectos da vida de Francisca da Silva Oliveira.

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    Francisca da Silva Oliveira (Chica da Silva)

    Mãe: Maria da Costa (africana escravizada)

    Pai: Antônio Caetano de Sá (homem branco)

    Nascimento: Milho Verde (Serro/MG), entre 1731 e 1735

    Falecimento: Arraial do Tejuco, 15 de fevereiro de 1796

    João Fernandes de Oliveira (contratador de diamantes)

    Mãe: Maria de São José (mulher branca)

    Pai: João Fernandes de Oliveira (português)

    Local de nascimento: Mariana (MG), 1720

    Falecimento: Lisboa, 31 de dezembro de 1779

    Descendência de Chica da Silva com Manuel Pires Sardinha:

    • Simão Pires Sardinha

    Descendência de Chica da Silva com João Fernandes de Oliveira:

    • Francisca de Paula Fernandes de Oliveira
    • João Fernandes de Oliveira Grijó
    • Rita Quitéria Fernandes de Oliveira
    • Joaquim Fernandes de Oliveira
    • Antônio Caetano Fernandes de Oliveira
    • Ana Quitéria Fernandes de Oliveira
    • Helena Fernandes de Oliveira
    • Luísa Fernandes de Oliveira
    • Maria Fernandes de Oliveira
    • Quitéria Rita Fernandes de Oliveira
    • Antônia Fernandes de Oliveira
    • Mariana Fernandes de Oliveira
    • José Agostinho Fernandes de Oliveira

Desenho árvore genealógica
Ilustração: Pedro Moreira

Os mitos criados em torno da Chica da Silva foram então sendo desfeitos, um a um. “Busquei a documentação cartorária no Fórum do Serro e no Arquivo Público Mineiro, bem como no Bispado — livros de batismo e de óbito catalogados, com datas. Iniciei assim a construção da biografia dela, mas dentro dos limites da documentação histórica, pois o que realmente é possível dizer sobre ela é unicamente o que está registrado em documentos”, observa.

Vasculhando arquivos no Fórum do Serro, a professora Júnia Furtado localizou a Carta de Alforria de Francisca da Silva, registrada em 25 de dezembro de 1753, hoje na posse do Museu da Memória do Judiciário Mineiro do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Mejud/TJMG).

Por meio do documento de liberdade, Júnia Furtado viu que, pouco depois de chegar ao Arraial do Tejuco para assumir a função de contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira comprou do médico português Manuel Pires Sardinha a escravizada Francisca.

Foto da Carta de Alforria de Chica da Silva
Carta de Alforria de Francisca da Silva, registrada em 25 de dezembro de 1753 (Crédito: Rossana Souza)

Liberdade, liberdade

O documento revela que Chica da Silva foi alforriada por João Fernandes poucos meses depois de ser adquirida. “Não era comum os homens que viviam em concubinato com as escravas as alforriarem em vida. Eles costumavam dar a liberdade a elas apenas em seus testamentos”, conta Júnia Furtado. O casal logo inicia um relacionamento, pois ele chega ao Tejuco em agosto de 1753, Chica é alforriada em dezembro do mesmo ano e em abril de 1754 já nasce a primeira filha: Francisca de Paula.

João Fernandes, conta a historiadora, era um homem culto. “Ele havia se formado em Direito Canônico em Coimbra e, aos 24 anos, tinha se tornado desembargador do Tribunal da Relação do Porto. E o pai havia adquirido para ele o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, que era o primeiro título da nobreza, o mais baixo, mas o único que podia ser comprado no século XVIII”, conta Júnia Furtado.

Quando chega em Arraial do Tejuco para assumir a administração do contrato de diamantes em sociedade com o pai homônimo, e começa a viver com Chica da Silva, João Fernandes já trazia consigo todo esse histórico. Embora o concubinato fosse proibido pela Igreja Católica, bem como a união entre pessoas de origens e condições tão díspares, a prática era disseminada na colônia, pois as mulheres portuguesas ou brancas nascidas no Brasil eram muito poucas.

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A casa onde Chica da Silva viveu com o contratador de diamantes em Diamantina, antigo Arraial do Tejuco (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Seria em uma casa a poucos passos da Intendência dos Diamantes, na então rua da Ópera, que Chica da Silva e o contratador iriam viver. Em madeira e adobe, o sobrado, que ainda hoje guarda muito de suas características originais, possui dois pavimentos, 17 cômodos, pisos em peroba do campo, quintal e varanda lateral com treliças, marca da influência moura na arquitetura diamantinense no período colonial. As treliças tinham triplo sentido: forneciam privacidade, iluminação e ventilação.

O imóvel, que em censo de domicílios do Tejuco, em 1774, foi registrado como sendo de propriedade de Chica da Silva, possuía uma capela particular, posteriormente demolida, consagrada a santa Quitéria, de quem João Fernandes e Francisca da Silva eram devotos — três de suas filhas levam o nome da santa: Quitéria Rita, Ana Quitéria e Rita Quitéria. Do pequeno templo, resta hoje apenas o portal.

De suas janelas, avista-se a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, que o contratador, prior da Irmandade do Carmo, manda construir, com recursos próprios. “A única exigência que ele fez foi de que se celebrasse uma missa para ele, todo sábado: em vida, pela saúde dele, e na morte, por sua alma”, conta a historiadora diamantinense Jaqueline Ribeiro, monitora do Museu do Diamante, cujo acervo encontra-se temporariamente na Casa da Chica da Silva.

Visitantes na Casa da Chica da Silva
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, vista de uma das janelas da casa onde Chica da Silva viveu (Crédito: Gláucia Rodrigues)

Um detalhe singulariza a Igreja de Nossa Senhora do Carmo: é a única cuja torre foi construída nos fundos da edificação. Para explicar isso, surgem duas lendas: uma é que Chica da Silva exigiu essa alteração para não ser incomodada pelo som dos sinos; a outra é que essa solução surgiu para que ela pudesse frequentar as missas, ao argumento de que negros não podiam ir além das torres, quando no interior das igrejas.

Na avaliação de Jaqueline Ribeiro, nenhuma das hipóteses se sustenta. Chica da Silva pertencia às principais irmandades do Tejuco, podendo frequentar as igrejas como integrante da elite da época, e a mudança da torre para os fundos do imóvel não impediria que o repicar dos sinos chegasse até sua casa, a poucos passos da Igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Fotos da Igreja do Carmo
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, que o contratador, prior da Irmandade do Carmo, manda construir, com recursos próprios (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Confrarias e irmandades

“Nas Minas Gerais não havia mosteiros e conventos, porque as ordens religiosas eram proibidas pela coroa portuguesa de entrar na província, uma vez que eram associadas ao contrabando de metais preciosos. Mas a Igreja se faz presente por meio das ordens terceiras, compostas por leigos devotos”, explica o professor da UFMG e historiador Eduardo França.

No Arraial do Tejuco, no século XVIII, as principais irmandades eram a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a de Nossa Senhora das Mercês dos Mulatos ou Pardos, a de São Francisco de Assis e a de Nossa Senhora do Carmo — as duas últimas congregavam a elite. Há confirmações de que Chica da Silva pertenceu pelo menos às três primeiras.

São as confrarias que começam a construir as igrejas em Minas Gerais, dotando o Tejuco de templos luxuosos, ornados com pinturas e esculturas dos grandes mestres da época, muitas delas realçadas com ouro. A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, patrocinada pelo contratador, possui o primeiro órgão construído no Brasil, além de imagens sacras vindas de Portugal, a mando de João Fernandes.  

Pública e duradoura

Pelo registro de batismos dos filhos, verifica-se que Francisca da Silva teve praticamente um filho por ano com João Fernandes — foram 13 no total, ao longo de aproximadamente 17 anos de relacionamento: nove meninas e quatro meninos, o que desmonta o imaginário de “lasciva” associado a ela. E o contratador de diamantes reconheceu toda essa descendência em seu testamento, mostrando não duvidar da paternidade.

Assim, observa Júnia Furtado, além de pública, relação do casal foi duradoura, só sendo interrompida quando João Fernandes volta a Portugal para disputar com a madrasta a herança do pai, que havia morrido em 8 de setembro de 1770. Outros aspectos revelam o esforço de conferir legitimidade à relação, embora o casamento não tenha ocorrido oficialmente. Entre eles, está o fato de que os nomes de algumas filhas homenageiam as irmãs de João Fernandes.

Ao partir para Portugal, em 24 de dezembro de 1770, João Fernandes leva consigo três filhos do sexo masculino, deixando apenas o mais novo, e leva com ele também Simão Pires Sardinha, o filho que Chica teve com o proprietário anterior. De acordo com a professora Júnia, esse movimento é mais um a revelar o empenho do casal em oferecer a melhor educação para os filhos e garantir a eles mais possibilidades de ascensão e inserção social.

Para entrar na universidade, à época, havia os chamados “inquéritos de genere”, quando se investigava a ascendência do candidato. Essa documentação foi importante fonte de informação. Ali, Júnia Furtado encontrou o dado de que Chica da Silva havia nascido em Milho Verde e de que era filha de Maria da Costa e Antônio Caetano de Sá.

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O distrito de Milho Verde, pertencente à Comarca do Serro (Créditos: Acayauã Bié e Henry Yu)
Recolhimento de Macaúbas

“Chica da Silva teve todas as nove filhas alfabetizadas, o que não é pouco, se pensarmos que estamos falando do século XVIII. Foi uma mulher que, certamente, teve condições materiais para isso, mas ela também teve uma percepção de mundo, um imaginário e uma projeção de futuro para as filhas que se destacam”, observa a historiadora e curadora de arte Lilian Oliveira. E essa formação ocorreria em Macaúbas, o principal educandário da época.

Em seu livro “Chica da Silva e o contratador de diamantes – o outro lado do mito”, Júnia Furtado afirma que, quando entravam para o recolhimento, as mulheres eram obrigadas a adotar “padrões de comportamento que demarcavam o início de uma nova vida”. Ela explica que, “num ritual de passagem”, elas “abandonavam o nome, as roupas e os antigos modos. (...). Comportavam-se com humildade; os gestos deviam ser contidos e, em voz baixa, falar ‘só o que for preciso e necessário, e sempre com modéstia’”.

Madre no recolhimento
Madre Maria Imaculada conta que Chica da Silva e João Fernandes foram benfeitores de Macaúbas (Crédito: Gláucia Rodrigues)


Guardiãs da história do recolhimento, as freiras que vivem hoje em clausura no local, atualmente um mosteiro, contam que Chica da Silva e o contratador de diamantes foram grandes benfeitores de Macaúbas. “Temos muitos documentos mostrando essa história”, afirma a madre emérita Maria Imaculada de Jesus Hóstia, que entrou para o Mosteiro de Macaúbas aos 17 anos — hoje, ela tem 86 anos.

Como parte do dote para as filhas serem recolhidas no educandário, o casal manda construir uma nova ala com celas e um mirante. A área seria conhecida como “Ala do Serro” e se destinaria ao abrigo das filhas e dos escravizados que serviriam a elas. Ao contratador de diamantes é também atribuída a construção de uma pequena capela, ricamente ornada, localizada dentro da edificação.

Adalberto Gabriel em Macaúbas
Adalberto Mateus mostra petições feitas por João Fernandes e Chica da Silva ao recolhimento (Crédito: Gláucia Rodrigues)


“Entre as documentações administrativas do recolhimento, há uma, de 1768, na qual João Fernandes de Oliveira solicita que sua filha Helena, então com 5 anos de idade, desse entrada ali”, conta Adalberto Mateus, técnico do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG).

Em outra petição, de 1780, a própria Francisca da Silva Oliveira pede que três das quatro filhas reclusas à época pudessem deixar o recolhimento para uma vida fora da clausura: Luiza Maria, Maria de São José e Quitéria Rita. Nos versos dos dois documentos citados por Adalberto Mateus, consta a autorização do Bispado.

A chamada “Ala do Serro”, patrocinada por João Fernandes de Oliveira, e uma de suas celas (Crédito: Gláucia Rodrigues)

“A construção do recolhimento em Macaúbas se iniciou em 1714, e em 1716 houve a primeira entrada de recolhidas. É curioso que a tradição oral de Macaúbas sempre denominou a parte da construção patrocinada pelo contratador como ‘Ala do Serro’, e nomeou como ‘Casa do Serro’ a residência externa que o casal construiu. Trata-se de uma referência explícita à origem de Chica da Silva, que nasceu em Milho Verde”, observa o técnico do Iepha.

Na história de Minas, de acordo com o pesquisador Adalberto, há o registro de apenas duas casas dedicadas a mulheres no século XVIII: a de Macaúbas e uma no Vale do Jequitinhonha. “Uma antiga estrada, margeando o Rio das Velhas, ligava o Serro e o Antigo Arraial do Tejuco ao Recolhimento de Macaúbas. Esse é um dos fatores que facilitou a internação dessas meninas na instituição”, deduz.

Além das filhas da elite, no recolhimento eram internadas também, para reclusões definitivas ou passageiras, mulheres devotas, viúvas e esposas, colocadas no estabelecimento por seus maridos, durante viagens deles para fora da Capitania ou, segundo a professora Júnia, ante suspeitas ou a confirmação de adultério.

“A presença das filhas do casal Francisca da Silva e João Fernandes — senhor de grande importância política e administrativa na história da coroa portuguesa — é mais um demonstrativo do que Macaúbas representou para Minas Gerais no século XVIII”, salienta Adalberto.

Para a história de Macaúbas, avalia o técnico do Iepha, a notícia de que o testamento de Chica da Silva foi escrito no recolhimento representa um capítulo especial, pois confirma a presença dela no cotidiano da instituição, comprova que a instituição gozava de sua confiança e indica que a ex-escravizada teve uma vida presente nas imediações do educandário. “É algo que complementa a trajetória dessa família com o local”, ressalta.

Chica da Silva
Da casa onde o casal passava temporadas, em Macaúbas, avista-se toda a fachada principal do recolhimento (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Modos da elite

Diversas documentações do século XVIII, analisadas pela pesquisadora Júnia Furtado, desvendam outros aspectos da vida de Chica da Silva. O casal possuía uma chácara, no bairro da Palha, na qual eram apresentadas peças de teatro e óperas e onde ocorriam saraus, e o contratador de diamantes mantinha uma banda de músicos. Essas duas informações são indicativos da vida social requintada que João Fernandes e sua companheira levavam.

Já registros de óbito, batizados, casamentos e filiações às irmandades no Tejuco demonstram que Chica da Silva foi proprietária, ao longo de sua vida, de pelo menos 104 cativos. O fato de forros terem tido escravizados, observa Júnia Furtado, embora cause estranheza nos tempos atuais, era comum à época. “Tratava-se de um mecanismo essencial para sua inserção no mundo dos livres, onde reinava o desprezo pelo trabalho, pelo viver das próprias mãos”, esclarece a professora.

Júnia Furtado com o livro O Contratador de Diamantes
A professora Júnia Furtado escreveu um livro que mostra "o outro lado do mito" (Crédito: Gláucia Rodrigues)


Em seu trabalho como historiadora, Júnia Furtado foi dissipando as camadas de preconceitos sobrepostas à imagem de Chica da Silva para descobrir, em parte, quem teria sido aquela mulher que viveu no período colonial, no Arraial do Tejuco, e que iniciou sua vida em circunstâncias profundamente desafiadoras; como se a pesquisadora estivesse trabalhando sobre uma fotografia antiga, que aos poucos vai sendo revelada, a partir dos processos químicos sobre o papel fotográfico.

Para imprimir um pouco mais de nitidez ao retrato de Francisca da Silva Oliveira, Júnia Furtado esperava encontrar o testamento da personagem, no Fórum do Serro, mas nunca conseguiu localizá-lo. Finalmente com a cópia do documento em mãos, a pesquisadora afirma que o documento corrobora as produções historiográficas que vêm sendo produzidas sobre Chica da Silva.

A figura que se apresentou a Júnia Furtado foi a de uma mulher que nasceu escravizada, mas que, por mecanismos diversos, inseriu-se na sociedade da época, frequentando a elite do Tejuco: teve muitos escravizados — e alforriou poucos deles; era religiosa; pertenceu a irmandades; e criou 14 filhos, dando a eles a melhor educação possível. Uma mulher que buscou ascender socialmente e, nas palavras da professora Júnia Furtado, “se branquear”, a fim de “diminuir a marca que a condição de parda e forra impunha a ela mesma e aos seus descendentes”.

Imagem de Chica da Silva feita em nanquim, na janela
Aquarela na qual o artista José Wash Rodrigues, em, 1918, retratou a casa de Chica da Silva em Diamantina 
(Crédito Iphan. Arquivo Central, seção Rio de Janeiro. Série Inventário Caixa MG 29 Foto 41753)