A construção do mito
 
Romanceiro da Inconfidência

“Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!
Cara cor da noite
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(...)
Escravas, mordomos
seguem, como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.
(Doze negras em redor,
— como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

(...)
Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva
da Chica-que-manda!
E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.
(...)

Cecília Meireles

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Os versos acima, sobre a lendária personagem histórica Chica da Silva, integram o monumental poema “Romanceiro da Inconfidência”, da escritora Cecília Meireles. Ao discorrer sobre a conjuração mineira, a poeta trouxe à cena também outros personagens do período colonial brasileiro que, por diferentes caminhos, passaram a povoar o imaginário coletivo.

Francisca da Silva Oliveira, uma das inúmeras forras do período setecentista que viviam em concubinato com seus senhores, deixou a noite dos tempos e o anonimato para ser revivida em narrativas, pelos séculos afora, a partir do livro “Memórias do Distrito Diamantino da Comarca de Serro Frio”, de Joaquim Felício dos Santos, publicado em 1868, portanto, mais de sete décadas depois da morte dela, ocorrida em 1796.

Retrato de Chica da Silva feito por Guignard
Retrato de Chica da Silva, por Guignard (Crédito: Acervo Museu Casa Guignard/ Diretoria de Museus/ Secult-MG)
Do anonimato à fama

Joaquim Felício dos Santos foi um advogado e historiador amador, filho de tradicional família da elite diamantinense. “Ele escreveu as ‘Memórias do Distrito Diamantino’ na forma de folhetins, no jornal ‘O Jequitinhonha’. Na época, a documentação da Real Extração ainda era acessível e assim ele consultou muitos documentos sobre a exploração dos diamantes”, observa a professora Júnia Furtado, que é autora, entre outros, do livro “Chica da Silva e o Contratador de Diamantes – o outro lado do mito”.

O advogado era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas (IHGMG), que à época, ainda segundo Júnia Furtado, estava mais preocupado em contar a história do ponto de vista da tradição portuguesa. “Nesse sentido, Joaquim Felício dos Santos terá o mérito de, com este livro, transformar dois escravos em personagens históricos: Chica da Silva e o Negro Isidoro. Mas, enquanto este último é apresentado de forma positiva, Chica é retratada de forma muito negativa”, avalia.

Essa obra que alça Francisca da Silva à condição de figura histórica contém cerca de 400 páginas sobre o Distrito Diamantino, divididas em 42 capítulos. Em apenas um deles, em pouco mais de duas páginas, Joaquim Felício fala sobre Francisca da Silva, que ali ganha a alcunha de “Xica da Silva”. Ela é apresentada pelo autor como uma mulher cuja vontade “era cegamente obedecida” pelo contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira e que tinha “seus mais leves e frívolos caprichos prontamente satisfeitos”.

Carta topográfica
A cidade de Diamantina, antigo Arraial do Tejuco, registrada no século XIX (Crédito: Augusto Riedel 1836 a 1877)
Dominadora do Tejuco

“Dominadora do Tejuco, com a influência e o poder do amante, fazia alarde de um luxo e grandeza que deslumbravam as famílias mais ricas e importantes; quando, por exemplo, ia às igrejas — e então era aí que se alardeavam grandezas — coberta de brilhantes e com uma magnificência real, acompanhavam-na doze mulatas esplendidamente trajadas: o lugar mais distinto do templo era-lhe reservado”, diz o diamantinense.

A descrição alcança aspectos da personalidade e também da aparência da ex-escravizada. Ele afirma que Chica da Silva era “mulata de baixo nascimento”, de “feições grosseiras, alta corpulenta, trazia a cabeça raspada e coberta com uma cabeleira anelada (...); não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito. Não tivera educação, enfim, não possuía atrativo nenhum que pudesse justificar uma forte paixão”.

Como ressalta a professora Júnia Furtado, Joaquim Felício não se baseia em documentações para falar sobre Chica da Silva. “Ele o faz baseado no que um homem branco da elite, no século XIX, quando a escravidão ainda era vigente, diria sobre uma escrava forra”, pontua.

Ele discorre sobre uma mulher que deixara, após a morte, significativo patrimônio, algo que Joaquim Felício dos Santos sabia por ter atuado no processo de partilha de uma neta de Chica da Silva, que se divorciou de um tio dele, e por ter ele sido procurador em uma ação relacionada à posse de bens por herdeiros do contratador de diamantes.

“Esses bens eram principalmente seis fazendas — com grandes extensões de terra, imensa escravaria e muito gado — e também  imóveis, joias e ouro”, conta a professora Júnia. Ao ter acesso ao patrimônio, Joaquim Felício, afirma a pesquisadora, fica “horrorizado” com o fato de uma ex-escravizada ter acumulado tanta riqueza. “Por isso, ele a retrata de forma muito negativa”, avalia a professora.

Arraial do Tejuco
O Passadiço da Glória, uma das imagens mais emblemáticas de Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Camadas de estereótipos

Outra obra literária, surgida em 1966, será de grande impacto na construção desse mito. “As histórias terríveis que circulam sobre Chica da Silva estão no livro ‘Chica que manda’, de Agripa Vasconcelos: um escritor que se ancorava no gênero literário ‘romance histórico’, no qual ele pegava personagens reais e, a partir daí, criava uma ficção, sem compromisso com a verdade histórica”, ressalta a professora.

Agripa, que era médico de profissão, explora na obra o poder de uma mulher negra sobre um homem branco. “Ele a apresenta como uma mulher malévola, ciumenta e cruel. Ocorre que o livro de Agripa fez tanto sucesso que, quando você conversa com as pessoas sobre Chica da Silva, percebe que o que ele escreveu se tornou a memória coletiva oral sobre ela, embora sejam histórias criadas”, salienta.

Ambos os autores, avalia a professora, revelam um forte ressentimento contra uma ex-escravizada. No entanto, no todo ou em parte, as palavras de Joaquim Felício e Agripa Vasconcelos foram reforçadas e popularizadas, ao longo dos anos, e em sua esteira surgiram outras produções culturais que sobrepuseram novas camadas de estereótipos à figura humana de Francisca, soterrando-a mais e mais.

Assim, desde que ganhou visibilidade por meio de Joaquim Felício dos Santos, paradoxalmente, a personagem real foi sendo apagada por diferentes romances, peças de teatro, novela, sambas-enredos e poemas, com destaque para um livro escrito já no século XX por João Felício dos Santos, sobrinho-neto de Joaquim Felício. Esta obra retoma o roteiro que inspirou o filme “Xica da Silva”, de 1976, do cineasta Cacá Diegues, que popularizou Chica da Silva e solidificou uma imagem distorcida da personagem real.

Carta topográfica
Painel da artista plástica Yara Tupynambá, em Diamantina, retrata Chica da Silva (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Novas interpretações

A historiadora Jaqueline da Conceição Ribeiro é uma mulher negra nascida no distrito diamantinense de Mendanha, onde se encontra um cemitério de escravizados, tombado pelo município em 2004. Monitora do Museu do Diamante, cujo acervo se encontra, atualmente, na casa onde Chica da Silva viveu com o contratador, ela conduz, todos os anos, milhares de pessoas que vão até a residência, muitas delas atraídas pela personalidade icônica criada pela ficção.

Os visitantes, especialmente os estrangeiros, chegam à procura das lendas ao redor de Chica da Silva sensual, que é como ela foi retratada no cinema. E há quem reproduza as ficções disseminadas em livros, como se fossem fatos reais envolvendo a personagem. “Entre outras histórias, está uma na qual ela teria mandado extrair todos os dentes de uma mulher submetida ao trabalho escravo, por ciúmes de João Fernandes”, conta Jaqueline.

A lenda à qual Jaqueline se refere é uma das histórias criadas por Agripa Vasconcelos em “Chica que manda”.  Nela, João Fernandes apresenta a Chica duas escravizadas que ele acaba de adquirir. Uma delas é Anselma, sobre a qual ele diz: “Olhe como tem os dentes bonitos”. No romance, dominada pelo ciúme, no mesmo dia, já no jantar, Chica faz a mulher oferecer ao contratador de diamantes, em uma bandeja de prata, os próprios dentes, que ela havia mandado arrancar “a torquês”.

Eduardo França
A historiadora Jaqueline Ribeiro na casa onde Chica da Silva viveu em Diamantina (Crédito: Gláucia Rodrigues)

No mesmo livro, Agripa cria outras cenas nas quais Chica da Silva ordena que sejam cometidas atrocidades. Em uma delas, uma desafeta é amarrada à beira de um rio para ser engolida por uma sucuri; em outra, uma mulher é enterrada viva; e há o episódio de um sujeito que tem os pés “reduzidos a ossos, com alguns dedos arrancados”, depois de terem sido atados para serem devorados por piranhas.

Além do lado da crueldade, Jaqueline Ribeiro lembra que Chica da Silva foi muitas vezes apresentada, ao longo do tempo, como uma mulher lasciva, “devoradora de homens”. “Mas logo ela, que, assim como tantas outras mulheres, foram compradas como objeto sexual e violentadas na condição de escravizadas?”, questiona a monitora do Museu do Diamante.

Jaqueline Ribeiro destaca que Chica da Silva, ainda adolescente, teve um filho com um dos seus proprietários, o médico português Manuel Pires Sardinha, que à época tinha cerca de 60 anos de idade. “Não sabemos em que circunstâncias essa criança foi gerada. O que sabemos é que, ainda na infância, Chica foi submetida ao trabalho escravo; provavelmente, a primeira coisa que ela cobiçou foi a própria liberdade”, declara.

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Cidade de Diamantina, antigo Arraial do Tejuco (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Sentidos profundos

Jaqueline observa que Joaquim Felício dos Santos, ao retratar Francisca da Silva como uma mulher feia, desprovida de inteligência, cruel e desumana, o fez baseado no pensamento misógino e escravista da época. “A história oficial do nosso país também foi contada dessa forma: ela enfatiza a presença dos portugueses, menciona os índios como preguiçosos e o povo negro, de modo geral, como pessoas inferiores”, analisa.

A curadora de arte e historiadora Lilian Oliveira também reitera o fato de que Joaquim Felício dos Santos fala sobre Francisca da Silva sem tê-la conhecido e de um lugar de poder. “Ele é um memorialista e escreve sobre ela de ouvir falar, e esse ‘ouvir falar’, essa oralidade, foi repassada através do elo familiar dele, branco, português”, observa.

Lilian Oliveira acrescenta que até a forma como Francisca da Silva entrou para a história — como “Chica”, um apelido, uma redução —, “já traz um sentido profundo”. “Na década de 1970, quando o movimento feminista brasileiro começa a criar pernas, essa mulher é concebida cheia de sensualidade. Cacá Diegues é um cineasta de grande valor, mas é importante considerar que somos filhos do nosso tempo”, pontua.

Sobre esse lado hipersexualizado que foi associado a Chica, Lilian ressalta que, cada vez mais, as historiografias produzidas em torno da ex-escravizada vão mostrando que ele não corresponde à realidade. “Uma mulher que teve 14 filhos não teria na praça um corpo com tantos atributos de sexualidade. O que observamos é que todas essas fontes sobre Chica revelam muito o que os homens pensavam, em geral, sobre nós, mulheres”, declara.

Visitantes na Casa da Chica da Silva
Visitantes conhecem a casa onde Chica da Silva viveu com o contratador de diamantes (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Reparação histórica

Para Jaqueline Ribeiro, que todos os anos conduz milhares de pessoas pela Casa de Chica da Silva, a imagem da icônica personagem do período colonial mineiro precisa ganhar novos contornos. “Ela foi uma mulher escravizada que conseguiu ascender socialmente e, para isso, precisou enfrentar a sociedade racista, conservadora e machista da época, lutando para ter liberdade, ascensão social e dignidade, em pleno século XVIII”, diz.

A monitora do Museu do Diamante observa que, na atualidade, muitas pessoas que visitam a casa onde a ex-escravizada viveu com o contratador de diamantes estão interessadas em saber sobre a real história de Chica da Silva, e esse é um esforço que Jaqueline faz, todos os dias, com seu trabalho. “Penso que isso é uma reparação histórica, não somente para com a Francisca da Silva, mas para com todo o povo negro, que na história foi colocado como formado por pessoas de raça inferior — ‘raça’, um termo que nem usamos mais”, observa.

Eduardo França
Lilian Oliveira avalia que Francisca da Silva merece uma reparação histórica (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Espelho de uma época

É por isso que, destaca a professora Júnia Furtado, o mito se ancora de alguma forma no passado, mas não corresponde ao que Francisca da Silva foi. “O mito diz respeito, na verdade, à vivência do autor e às questões com que ele está lidando. Assim, décadas depois da obra de Joaquim Felício dos Santos, Cacá Diegues, que está vivendo o nascimento do movimento negro, daquela ideia de que black is beautiful, positiva a Chica da Silva, mas assentando o poder dela na sexualidade”, enfatiza.

Mais tarde, lembra a biógrafa de Chica da Silva, surgem narrativas nas quais essa personagem se torna a pessoa que pensou a Inconfidência Mineira. “Era o momento de democratização no País, e, assim, ela é politizada. O que observamos é que Chica da Silva vai espelhar as questões do momento em que o autor está escrevendo sobre ela”, avalia.

Eduardo França
Detalhe esquina do imóvel que foi sede da Intendência dos Diamantes (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Virada de página

Em seu livro “Xica da Silva, a Cinderela Negra”, a historiadora Ana Miranda afirma que “as lendas que o povo conta e reconta sobre Xica da Silva parecem uma verdade, se não histórica, ao menos poética. São as chamadas anedotas definidoras. Vemos nelas indícios de uma existência, tanto quanto num auto de batismo, casamento ou óbito, permitindo a reconstrução de uma história pessoal a partir de uma figuração pública”.

Na visão de Ana Miranda, essas narrativas “carregam a presença de Xica, de geração em geração, e a tornam indestrutível quanto à ação do tempo. Mas também incorporam as mentalidades, superstições, crendices, suspeitas, intolerâncias, os ódios irracionais e a aversão a outras raças, sexos, credos, que marcam as épocas”.

Lilian Oliveira completa: “Nosso racismo é sistêmico, e isso torna nebulosa a história de uma mulher, brasileira, que eu, menos como historiadora, mas principalmente como mulher, diamantinense, descendente de negros, e também de portugueses e indígenas, gostaria de conhecer. Fico a pensar o que Francisca da Silva diria à Chica da Silva; o Brasil conhece a Chica, e precisa agora conhecer a Francisca, como uma reparação histórica, uma virada de página.”

O que os documentos oficiais revelam sobre quem de fato foi aquela mulher que viveu no Arraial do Tejuco na segunda metade do século XVIII?

Arraial do Tejuco
O antigo Arraial do Tejuco, cenário da história de Chica da Silva e o contratador (Crédito: Gláucia Rodrigues)