Para Jaqueline Ribeiro, que todos os anos conduz milhares de pessoas pela Casa de Chica da Silva, a imagem da icônica personagem do período colonial mineiro precisa ganhar novos contornos. “Ela foi uma mulher escravizada que conseguiu ascender socialmente e, para isso, precisou enfrentar a sociedade racista, conservadora e machista da época, lutando para ter liberdade, ascensão social e dignidade, em pleno século XVIII”, diz.
A monitora do Museu do Diamante observa que, na atualidade, muitas pessoas que visitam a casa onde a ex-escravizada viveu com o contratador de diamantes estão interessadas em saber sobre a real história de Chica da Silva, e esse é um esforço que Jaqueline faz, todos os dias, com seu trabalho. “Penso que isso é uma reparação histórica, não somente para com a Francisca da Silva, mas para com todo o povo negro, que na história foi colocado como formado por pessoas de raça inferior — ‘raça’, um termo que nem usamos mais”, observa.
Lilian Oliveira avalia que Francisca da Silva merece uma reparação histórica (Crédito: Gláucia Rodrigues)
É por isso que, destaca a professora Júnia Furtado, o mito se ancora de alguma forma no passado, mas não corresponde ao que Francisca da Silva foi. “O mito diz respeito, na verdade, à vivência do autor e às questões com que ele está lidando. Assim, décadas depois da obra de Joaquim Felício dos Santos, Cacá Diegues, que está vivendo o nascimento do movimento negro, daquela ideia de que black is beautiful, positiva a Chica da Silva, mas assentando o poder dela na sexualidade”, enfatiza.
Mais tarde, lembra a biógrafa de Chica da Silva, surgem narrativas nas quais essa personagem se torna a pessoa que pensou a Inconfidência Mineira. “Era o momento de democratização no País, e, assim, ela é politizada. O que observamos é que Chica da Silva vai espelhar as questões do momento em que o autor está escrevendo sobre ela”, avalia.
Detalhe esquina do imóvel que foi sede da Intendência dos Diamantes (Crédito: Gláucia Rodrigues)
Em seu livro “Xica da Silva, a Cinderela Negra”, a historiadora Ana Miranda afirma que “as lendas que o povo conta e reconta sobre Xica da Silva parecem uma verdade, se não histórica, ao menos poética. São as chamadas anedotas definidoras. Vemos nelas indícios de uma existência, tanto quanto num auto de batismo, casamento ou óbito, permitindo a reconstrução de uma história pessoal a partir de uma figuração pública”.
Na visão de Ana Miranda, essas narrativas “carregam a presença de Xica, de geração em geração, e a tornam indestrutível quanto à ação do tempo. Mas também incorporam as mentalidades, superstições, crendices, suspeitas, intolerâncias, os ódios irracionais e a aversão a outras raças, sexos, credos, que marcam as épocas”.
Lilian Oliveira completa: “Nosso racismo é sistêmico, e isso torna nebulosa a história de uma mulher, brasileira, que eu, menos como historiadora, mas principalmente como mulher, diamantinense, descendente de negros, e também de portugueses e indígenas, gostaria de conhecer. Fico a pensar o que Francisca da Silva diria à Chica da Silva; o Brasil conhece a Chica, e precisa agora conhecer a Francisca, como uma reparação histórica, uma virada de página.”
O que os documentos oficiais revelam sobre quem de fato foi aquela mulher que viveu no Arraial do Tejuco na segunda metade do século XVIII?