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28/03/19 17:51

Coparentalidade

 
 

Dois amigos de longa data planejaram um filho juntos, mas só depois de muitos anos tiveram a Ciça.

Antes do tratamento de transição do sexo masculino para o feminino, que a tornaria estéril, uma mulher trans propôs à melhor amiga terem um filho. Do acordo nasceu o Hael.

Um homem, cuja esposa já tinha filhos e não queria arriscar uma terceira gravidez, e uma mulher, casada com um homem que não podia mais ter filhos, após assinarem um contrato de geração de filho, conceberam a Carol*.

Essas três histórias, tão diferentes, guardam uma coisa em comum: a coparentalidade, termo que dá nome à experiência vivida por pessoas que não têm vínculo conjugal e se unem para ter filhos e criá-los de forma compartilhada.

Ciça
 
 

A pequena Ciça, de quatro meses, é filha de Juliana e Maurício. Ela não é fruto do namoro de seis meses entre eles, ocorrido há mais de vinte anos, mas sim de uma grande amizade. Eles dividiram a mesma casa com outros amigos por bastante tempo, e sempre se apoiaram. Quando ele se mudou para São Paulo, ela continuou morando em Belo Horizonte, sem perderem o contato. Os dois não queriam passar por essa vida sem experimentarem a maternidade e a paternidade. Aos 32 anos, Juliana propôs a Maurício terem um filho, mas a tentativa não deu certo. Três anos depois, eles tentaram novamente, mas a gravidez também não aconteceu. Posteriormente, Maurício e Juliana tiveram filhos com outros parceiros, ambos em relacionamentos amorosos que duraram pouco tempo.

Como continuavam amigos, resolveram viajar com as respectivas crianças no Carnaval de 2018 e, nesse feriado, a gravidez, tão desejada havia uma década, aconteceu. Maurício ficou assustado, mas Juliana insistiu nos antigos projetos de terem um filho juntos. Hoje eles formam uma grande família coparental – três irmãos e dois amigos.

Família da Ciça

 
 

"Agora Maurício me agradece por eu ter insistido. Ele mora em São Paulo e vem todo mês com a filha, que é alucinada com a irmãzinha. Às vezes vem só a filha dele, a mãe da filha dele também vem nos visitar. É muito legal, porque estamos criando três irmãos e somos dois amigos. É bonita a nossa relação, dá muito certo porque temos uma relação antiga e muito boa. Não somos uma família nos moldes tradicionais. Acredito no modelo tradicional, mas acho que cada história tem um lugar, acho importante respeitar a nossa história", diz Juliana.

Quando perguntada sobre contrato de geração de filho ou de guarda compartilhada, Juliana é enfática: "Nunca me passou pela cabeça fazer um contrato para estabelecer as regras. Não temos contrato formal, dividimos meio a meio os custos com a Ciça, eu passo o valor para ele todo mês e não tem problema. Durante a gravidez, quando ele me perguntava como iria ser, eu falava que não adiantava tentar definir, porque é impossível saber até chegar, e cada momento é diferente, tem que ir vivendo... Se aparecer alguma dificuldade, replanejamos, os rumos podem ser mudados, a história é dinâmica. Agora bebezinha, ela fica comigo, e confesso que me dá um aperto no coração ao pensar que algum dia ela pode ir morar com o pai, o que pode acontecer, porque ele é um paizão".

 

Carol
 
 

Felipe* sonhava em ser pai e, como uma terceira gravidez seria arriscada para sua esposa, que tinha dois adolescentes do primeiro casamento, ele propôs a algumas mulheres gerarem um filho coparental. Elisa* ficou sabendo do desejo de Felipe e o procurou, com o consentimento do marido, para que eles fizessem uma inseminação artificial, que teve sucesso na primeira tentativa. Assim, nasceu Carol*, que já está com 10 anos e desde que chegou a esse mundo tem a alegria de ter duas mães e dois pais.

Quando os genitores se preparavam para a inseminação, um amigo da área do direito alertou Felipe sobre os riscos da empreitada e a segurança que um contrato de geração de filho ofereceria. Foi o primeiro documento desse tipo que o advogado Rodrigo da Cunha elaborou. “No direito de família temos as famílias conjugais e as famílias parentais. As famílias conjugais são oriundas do casamento ou da união estável, e podem ser heteroafetivas ou homoafetivas. As famílias consideradas parentais surgem no mundo jurídico quando acontece a separação de conjugalidade e parentalidade. Parentalidade é uma expressão nova, usada pela primeira vez na década de 1960, no campo da psicanálise, e daí vem a expressão ‘coparentalidade’, que é quando duas pessoas se encontram com o objetivo de ter filhos responsavelmente”, explica Cunha.

Foi com essa responsabilidade de que fala o advogado que a gestação de Carol foi decidida pelos dois casais. Fernanda*, esposa de Felipe, o pai biológico, conta que o amor dela pela menina surgiu logo após o nascimento. Ela conta que ficou um pouco assustada quando concordou com a decisão do marido de fazer a inseminação em outra mulher. “É comum sentir medo do que é novo, das coisas que a gente não conhece, mas hoje a nossa relação é de mãe e filha. Uma vez, quando eu estava dando banho nela, bem pequena ainda, ela me chamou de mãe e disse ‘você cuida de mim, então você é minha mãe’”, conta Fernanda.

Inseminação assistida

Em outra ocasião, duas novas colegas de escola, curiosas pelo fato de Carol ter duas mães, ficaram fazendo perguntas. Para esclarecer, a menina acionou Fernanda: "Como é mesmo a minha história?" A mãe relembrou o que já lhe tinham contado: "Um médico pegou a sementinha do seu pai Felipe e colocou na barriga da sua outra mãe para encontrar com o óvulo dela e daí nasceu você". A menina, que estava estudando processos de fecundação na escola, logo concluiu: "Então nós somos ovíparos, né mamãe?" "Não, Carol, não somos ovíparos, mas a fecundação humana acontece da mesma forma que nos ovíparos de fecundação interna."

Quando pequena, Carol passava o dia na casa do pai biológico, onde tinha uma babá que cuidava dela. À noite, a menina dormia na casa da mãe biológica. Atualmente, com 10 anos, ela fica mais na casa do pai biológico, dorme algumas vezes por semana na casa da mãe biológica e alterna os finais de semana nas duas casas. Assim, a criança recebe os cuidados de quatro adultos, que se empenham para lhe dar a melhor educação possível, com aulas de inglês e esportes incluídas na rotina.

Felipe e Fernanda contam que a relação de Carol com todos os irmãos é ótima. Ela tem dois irmãos "adotivos" já adultos, filhos de Fernanda, e um irmão pouco mais velho do que ela pelo lado da mãe biológica. Esse irmão participa das festas e viaja de férias na companhia do pai biológico de Carol e familiares. O casal conta que a guarda compartilhada dá muito certo e que os problemas que surgem, como em qualquer relação, são resolvidos de forma pacífica.

Hael
 
 

Luiza se descobriu transexual depois dos 20 anos e queria muito ter um filho. Então, propôs para Graziele, sua amiga de alguns anos, terem um filho juntas. Há quatro anos nasceu Hael, que gosta de dizer que não tem papai e sim duas mamães. Conheça essa história:

Ciça
 
 

"Tem gente que quer casar e que não quer ter filho. Tem gente que quer ter filho, mas não quer casar e, às vezes, não quer nem ter relação sexual", analisa Rodrigo da Cunha. O advogado explica que a separação entre as ideias de conjugalidade e parentalidade entrou no mundo jurídico na década de 1980. Até então, uma mulher casada que se envolvia numa relação extraconjugal perdia a guarda do filho, porque era considerada culpada pelo fim do casamento, por exemplo. Com a atuação de psicólogos e assistentes sociais e com a evolução do pensamento jurídico, a mentalidade começou a mudar, afirmou.

"Hoje em dia as pessoas não estão querendo produção independente, elas querem dividir a responsabilidade de criar os filhos entre os genitores. A coparentalidade não tem um conteúdo moral forte, por isso é mais aceitável socialmente. Então as pessoas têm feito isso com a ajuda de sites especializados", afirma Rodrigo.

Advogado Rodrigo Cunha

 
 

Pela internet, é possível encontrar pessoas para ter filhos e dividir a responsabilidade da criação, como acontece com casais que se separam, "porém, sem os problemas decorrentes de uma conjugalidade que, por algum motivo, chegou ao fim", avalia. Ele lembra que, nesses casos de coparentalidade, é conveniente que se faça um contrato de geração de filho. "No começo, tudo são flores... Depois de um tempo podem vir alguns espinhos. Então, é importante estabelecer como vai ser o nome do filho, como será a guarda – a criação e o sustento. O contrato de coparentalidade é para isso, não simplesmente para falar de inseminação artificial. Para isso nem precisaria de contrato", resume Cunha.

Rodrigo questiona: "Qual é o problema de ter um filho com uma pessoa sem conjugalidade? Nenhum". Ele acrescenta que, ao pensar nas regras do contrato, os genitores podem até mudar de ideia, como aconteceu com dois clientes. "Eu já fiz alguns contratos de geração de filho. Houve um caso em que, ao discutir as cláusulas do contrato, os possíveis pais coparentais desistiram. O homem não concordou com as regras que a mulher queria, por exemplo, ver o filho só depois de dois anos. Por isso é importante deixar as regras claras antes da gravidez, porque combinado não sai caro".

De acordo com o advogado, a coparentalidade tem muitas chances de ter sucesso, porque o casal não sofre o desgaste da relação conjugal, na maioria das vezes nem existe relação sexual. O advogado lembra que boa parte da discussão entre pais separados, como guarda, convivência e divisão de despesas, não decorre do filho, e sim do resultado de uma relação conjugal ou amorosa mal resolvida. "Na coparentalidade não tem mágoa, a possibilidade de dar certo é muito grande", diz o advogado.

Rodrigo lembra que podem acontecer percalços, como a criança nascer com deficiência, não nascer com vida ou surgirem outras mudanças de percurso. "Nesses casos, o contrato pode ser alterado, porque é sempre uma previsão, não tem uma fórmula, cada caso é um caso. E, juridicamente, todo filho que nascer de uma relação coparental é herdeiro do pai e da mãe", considera.

Ciça
 
 

O mundo jurídico também já reconhece que algumas pessoas têm mais de um pai ou mais de uma mãe. Rodrigo afirma que os cartórios têm de registrar a realidade para proteger esses filhos.

A multiparentalidade surgiu no Brasil há aproximadamente uma década, em Rondônia. Um homem participou da criação do filho biológico da esposa; ao crescer, o jovem se deu conta de que tinha um pai biológico e aquele com quem conviveu – o pai afetivo. Esse filho queria incluir a vivência familiar em sua certidão de nascimento. Com isso, o Tribunal de Justiça de Rondônia autorizou a inclusão. Com o precedente, os outros tribunais do País passaram a aceitar pedidos semelhantes.

Outro caso de multiparentalidade aconteceu no Rio Grande do Sul, quando um casal de mulheres quis ter um filho. Por não quererem buscar material genético de um doador anônimo, elas propuseram a um amigo terem um filho. Esse homem doou o material genético, sob a condição de também ser o pai oficialmente. O filho dessa união tem duas mães e um pai. Esse caso, entre outros, acarretou uma mudança no formato da certidão de nascimento no País. Agora, no espaço reservado para preencher os nomes dos genitores, lê-se "filiação".

A multiparentalidade também pode acontecer entre parentes, quando um dos genitores morre e o pai e/ou a mãe socioafetivos são incluídos na certidão, ou ainda em casos em que ocorre uma coparentalidade entre genitores que são casados com outras pessoas em relacionamentos hétero ou homoafetivos.

Ciça, Carol e Hael são frutos de novos modelos de família, coparentalidades que, em muitos momentos, transmutam-se em multiparentalidades. E a Justiça vem cumprindo seu papel de responder às demandas da sociedade, reconhecendo e ampliando os direitos dos cidadãos.

*Nomes fictícios

Coordenação plural: Marlyana Tavares, reportagem e fotografia: Soraia Costa, webdesign: Thiago Rique,  edição de Web: Danilo Pereira, revisão de texto: Patrícia Limongi, ilustração: Fernando Lima, imagens de vídeo: Augusto Brasil, edição de vídeo: Jéssica Hissa. Produzido pela Assessoria de Comunicação Institucional, Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

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