Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Fórum de Diamantina recebe comunidades quilombolas

Ação da 3ª Vice, do Cejusc local e de parceiros permitiu a escuta ativa de povos tradicionais


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A liderança da Quartel do Indaiá, Helena Maria Vieira dos Santos, contou sobre as dificuldades enfrentadas hoje por sua comunidade (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)
“A gente precisa de muita ajuda. Eu já fui atacada por fazendeiro, querendo tomar nossa terra. Tudo isso foi na minha porta, pra me bater. Mas só que eu não aceitei: eu sou quilombola.”

Com essa fala forjada à resistência, a liderança Helena Maria Vieira dos Santos, conhecida como Dona Sineca, relatou aos presentes no Salão do Júri do Fórum Joaquim Felício, na Comarca de Diamantina, no dia 27/11, algumas das dificuldades enfrentadas hoje por sua comunidade, a Quartel do Indaiá.

“Um conflito que a gente tem é no território da Chapada. Tem uma cancela que tá sempre com a corrente. A gente quer que a corrente seja retirada de lá. A gente quer o nosso território livre igual era no tempo do meu pai, no tempo do meu avô, no tempo da minha avó. Era tudo liberto. Nossa identidade não pode acabar.”

A declaração é de Jovita Maria Gomes Corrêa, da Mata dos Crioulos. Ela continuou:

“Quando chegaram pra fazer o parque lá, eles tinham que consultar a comunidade. A gente tira o sustento dali, não podiam ter feito isso, dizendo que iam preservar. Eles não preservam nada, quem preserva é a gente. Eles estão ‘despreservando’ o que a gente preservou. Eles não sabem cuidar da natureza melhor que nós, que somos raiz de lá.”

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Representante da comunidade Mata dos Crioulos, Jovita Maria Gomes Corrêa disse: “Nossa identidade não pode acabar” (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

As duas mulheres foram algumas das lideranças das Comunidades Quilombolas e Apanhadoras de Flores da Comarca de Diamantina que participaram da “Ação cidadania: escuta ativa”, iniciativa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que integrou as ações do Mês da Consciência Negra no Judiciário mineiro.

A atividade foi realizada pela 3ª Vice-Presidência, por meio do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania para demandas de Direito relativos a indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais da Justiça de 1º e 2º Graus (Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais), e pelo Cejusc da Comarca de Diamantina, com apoio de parceiros.

Essa foi a 2ª escuta ativa do Judiciário mineiro em comunidades quilombolas.

A ação no Fórum de Diamantina foi precedida de uma apresentação de integrantes da Quartel do Indaiá. Assista a trecho no vídeo abaixo:

Construção coletiva

“Sabemos que os povos e as comunidades tradicionais possuem modos próprios de viver, de se organizar, de transmitir saberes e de resolver conflitos. E a Justiça só cumpre verdadeiramente seu papel quando reconhece essa diversidade e, principalmente, aprende com ela”, declarou a juíza Letícia Machado Vilhena Dias.

A magistrada, titular da 1ª Vara Cível, Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Diamantina e coordenadora do Cejusc local, destacou a importância de se reconhecer que as comunidades quilombolas, historicamente, enfrentaram o silenciamento, o racismo e a exclusão das políticas públicas:

“Esse passado, que ainda produz efeitos no presente, não pode ser ignorado. Iniciativas como essa possuem um significado especial porque representam um compromisso com a reparação histórica, com o reconhecimento de direitos que estão garantidos na Constituição e com a abertura de espaços para que as vozes quilombolas sejam escutadas e respeitadas.”

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A juíza coordenadora do Cejusc da Comarca de Diamantina, Letícia Vilhena (esq.) e o prefeito da cidade (dir.), Geferson Burgarelli, no Salão do Júri do Fórum Joaquim Felício (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

Manifestação das lideranças

Logo no início dos trabalhos, em uma inversão com forte simbolismo, as autoridades presentes, que haviam sido chamadas a compor o dispositivo de honra, foram convidadas pela juíza a se sentarem na plateia para dar lugar às lideranças de cada uma das comunidades presentes. O gesto foi seguido de muitos aplausos.

Um a um, os representantes assumiram o microfone: além de Dona Sineca (Quartel do Indaiá) e de Dona Jovita (Mata dos Crioulos), foram ouvidos os relatos de lideranças das comunidades quilombolas de Braúnas; Vargem do Inhaí; Espinho; Andrequicé; Macacos; Fazenda Santa Cruz; e São João da Chapada.

“Hoje, estamos escrevendo uma nova história. Nunca imaginei que estaria nesse lugar, em um Fórum, não para ser julgada, mas para ser ouvida. Isso é um passo importantíssimo.”

A declaração é de Maria de Fátima Alves (da comunidade de Macacos), que integra a coordenação da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex).

Ela destacou que as comunidades estavam ali como povos que carregam histórias profundas, saberes antigos e modos de vida que atravessam gerações: “Somos apanhadores de flores sempre-vivas e quilombolas que habitam, cuidam e transformam esse território há séculos.”

Maria de Fátima pediu que suas vozes fossem compreendidas não como reclamação, mas como “afirmação de dignidade”, e que, para isso, é fundamental que o Sistema de Justiça enxergue os territórios quilombolas não apenas como “pedaços de terra”, mas também como espaços de memória, trabalho, espiritualidade, cultura e vida comunitária.

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Gilmara Tiju observou que os quilombos do Brasil foram responsáveis por mais de 50% da captura do carbono emitido pelo Brasil (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

Proteção do planeta

Liderança da comunidade quilombola Andrequicé, Gilmara Tiju observou que, naquele espaço de encontro, se fortaleciam “as vozes de quem historicamente protege a terra, a água, as sementes e a vida”. Ela fez coro com Imir de Jesus da Cruz Vales, de Vargem do Inhaí, que, ao se apresentar, contou: “Sou guardião das sementes crioula, guardião das águas e dos animais.”

Gilmara Tiju explicou que, ao longo da 30ª Conferência do Clima (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em novembro, no Pará, houve um marco importante: o lançamento do NDC dos Quilombos do Brasil: Anexo à Contribuição Nacionalmente Determinada do Brasil, que reconhece os territórios quilombolas como espaços de resistência negra, ancestralidade e também como áreas essenciais para a proteção do planeta Terra.

“Os quilombos do Brasil foram responsáveis por mais de 50% da captura do carbono emitido pelo País. Isso revela que proteger nossos territórios é proteger a vida; é uma estratégia fundamental para o equilíbrio climático do planeta”, declarou Gilmara.

Demandas principais

Em suas falas, as lideranças contaram sobre as dificuldades frequentes com fornecimento de energia, principalmente nas épocas de chuva; a falta de espaço adequado para atendimentos médicos; e as estradas em mau estado, que contribuem para o isolamento e trazem dificuldades diárias.

Narraram também questões como dificuldade de se conseguir ambulância, que não chega às comunidades ou chega tarde demais, em casos de emergência; ameaça de fazendeiros, grileiros e da mineração; pontes e passarelas destruídas; carência de oportunidades para escoar produtos agrícolas produzidos por eles; e promessas não cumpridas do Poder Público.

Entre outras queixas apresentadas, destaque para o ensino dentro dos territórios, a falta de oportunidades para quem retorna e a permanência dos mais jovens nas comunidades, para que estas se perpetuem e os conhecimentos ancestrais não se percam.

“Nossas crianças precisam aprender onde suas raízes estão fincadas. Não podem ser afastadas de sua identidade por espaços que não reconhecem suas histórias. Defendemos também a autonomia alimentar, a produção saudável, sem agrotóxicos, respeitando a terra, a saúde e a vida”, disse Gilmara.

Em uma mostra de que, apesar dos desafios, há lideranças jovens despontando entre os quilombolas, a comunidade Fazenda Santa Cruz se fez representar por Jordany Kelly Silva, de 26 anos, estudante de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM):

“Peço licença aos mais velhos para estar neste lugar. Sou nova, estou no início da caminhada.”

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A comunidade Fazenda Santa Cruz se fez representar por uma liderança jovem: Jordany Kelly Silva, de 26 anos (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

Acesso a direitos

Aos representantes de instituições públicas também foi dada a palavra, para que pudessem indicar possíveis soluções para cada uma das situações apresentadas. As propostas foram discutidas e constaram em ata, já com definição de prazos para o cumprimento do que foi proposto.

“Essa iniciativa é importante porque é o Sistema de Justiça, como um todo, voltando os olhos para uma população que, historicamente, sempre foi excluída, uma população que sempre encontrou barreiras para o acesso às instituições de Estado.”

A avaliação é do coordenador-adjunto do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais do TJMG, desembargador Enéias Xavier Gomes.

Ele observou que a ação leva cidadania para essas comunidades e contribui para que elas percebam a importância da manutenção de suas origens, suas histórias e suas terras e, até mesmo, para a reflexão sobre o que ser quilombola impacta em suas vidas.

“No Fórum e nas comunidades, o atendimento vai desde demandas individuais, como uma questão previdenciária e uma ação de família, até questões coletivas, que envolvem a delimitação da terra, o auxílio no reconhecimento da comunidade como quilombola; conseguimos evitar eventuais conflitos fundiários.”

O desembargador acrescentou que, para o Judiciário, a medida também é muito importante, porque, com ações preventivas, podem ser evitadas inúmeras demandas judiciais em casos envolvendo, por exemplo, saneamento básico, água, energia: “O ganho, portanto, é para as instituições, com a diminuição das demandas judiciais, e para as comunidades, que passam a ter, de fato, maior reconhecimento.”

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O desembargador Enéias Xavier destacou a importância de o Sistema de Justiça voltar os olhos para uma população historicamente excluída (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

O juiz Otávio Scaloppe Nevony, diretor do Foro da Comarca de Guanhães, a 1ª comarca do Judiciário mineiro a realizar uma escuta ativa em comunidade quilombola, em setembro deste ano, também participou do encontro em Diamantina.

“Somos servidores públicos. Estamos cumprindo nosso dever de ofício, mas, principalmente, nosso dever como pessoas”, disse o magistrado.

Ele destacou as condições adversas e desumanizantes a que esses povos foram submetidos no Brasil, quando trazidos da África, e o fato de ainda hoje a comunidade negra estar reivindicando direitos básicos:

“Apesar disso, eles sobrevivem, e em situações que nós não sobreviveríamos. Então, a nossa sobrevivência depende da sobrevivência deles. Já temos base científica de que a maior parcela de preservação ambiental está nessas comunidades indígenas e tradicionais.”

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O juiz diretor do Foro da Comarca de Guanhães, Otávio Scaloppe Nevony, também participou da ação de cidadania (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

Existir com dignidade

Durante o encontro, algumas das lideranças entregaram à juíza Letícia Vilhena cartas abertas com demandas de suas comunidades. Ecoando a força e os desejos comuns às várias vozes ouvidas durante a escuta ativa, a representante de Andrequicé resumiu:

“Seguimos em luta, com os pés na terra, a memória na ancestralidade e o olhar voltado para o bem-viver. Que nossos territórios permaneçam vivos. Que a justiça se concretize. E que nosso povo siga existindo com dignidade.”

Atenta a todas as falas das lideranças e dos representantes das instituições, estava uma das matriarcas da comunidade do Espinho, Luíza da Silva, de 93 anos: “Lá em Espinho, agora, quase que só tem velho. Não se ouve mais um grito de criança. Tem muita casa fechada.”

Ela contou que muitas vezes “deita pra dormir”, mas o sono não chega, e então se põe a lembrar de tudo o que já passou. A casa onde ela cresceu, construída pelo bisavô, resiste ao tempo, mas é um patrimônio da comunidade que está quase caindo.

“De dia fico lá na casa velha, mas, quando começa a trovejar, a gente vai depressa pra casa nova”, explicou. Sobre Espinho, ela disse que é um lugar “muito bonito”, que tem “arvoredo e mata pra todo lado”. Mas o que ela mais admira na comunidade é a união, algo que ela espera nunca se perder: “Tudo mundo é unido, combinado, graças a Deus.”

No dia 28/11, a ação de cidadania foi até a comunidade quilombola Raiz. Confira a matéria.

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Uma das matriarcas do Espinho, Luíza do Espinho, de 93 anos, contou que, na comunidade, hoje, predominam as pessoas idosas (Crédito: Cecília Pederzoli / TJMG)

Presenças

Participaram da ação de cidadania no Salão do Júri do Fórum Joaquim Felício representantes do Tribunal Regional Federal da 6ª região (TRF6); das Defensorias Públicas de Minas Gerais (DPMG) e da União (DPU); do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); da UFVJM; da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG); da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig); de Prefeituras e Câmaras Municipais locais; e do Projeto Caminhando Juntos (Procaj), de Diamantina.

Entre as diversas autoridades presentes, figuraram o juiz federal do TRF6 José Maurício Lourenço; o defensor público da União João Márcio Simões; os defensores públicos de Minas Gerais Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch, Eric Simão Saraiva e Letícia Fonseca Cunha; o prefeito de Diamantina, Geferson Burgarelli; o prefeito de Gouveia, Alberis Oliveira; o prefeito de Presidente Kubistchek, Osvaldino Reis da Silva; o presidente da Câmara Municipal de Gouveia, vereador Cassiano Ricardo Dória de Azevedo; o supervisor do Núcleo de Políticas de Igualdade Racial da Câmara Municipal de Diamantina, Renato Wagner da Cunha; e as professoras da UFVJM Paula Cristina Silva e Josiane Moreira da Costa.

Confira outras fotos no Flickr oficial do TJMG.

E assista abaixo a mais um vídeo da apresentação da comunidade Quartel do Indaiá no Fórum de Diamantina:

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