“O acesso ao território é para a gente manter viva nossa cultura, nossos saberes, nossa ancestralidade e, principalmente, para poder manter a nossa juventude aqui. Quando a gente perde o território, perde muita coisa. Nosso medo é que nossas crianças não conheçam campo de flor.”
O desabafo é de Andreia Ferreira, liderança da comunidade quilombola de apanhadores de flores sempre-vivas Raiz, localizada no topo da Serra do Espinhaço, no município de Presidente Kubitschek, em Minas Gerais, a 21 km do Serro e a 62 km de Diamantina.
Na comunidade, cuja existência já se aproxima dos 150 anos, vivem 27 famílias. “Estamos encurralados pelas fazendas de monocultura de eucalipto”, acrescentou outra liderança local, Erci Alves Ferreira.
A maior demanda da comunidade, afirmam as lideranças, é de acesso ao território, já que o povo ali se entende como parte da Serra. Mas as pessoas que vivem ali enfrentam outros desafios.
As dificuldades e as necessidades mais urgentes foram relatadas pela comunidade aos representantes do Sistema de Justiça que estiveram no Raiz, no dia 28/11, para a “Ação cidadania: Escuta ativa”.
A iniciativa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) integrou as ações do Mês da Consciência Negra no Judiciário mineiro, em uma realização da 3ª Vice-Presidência, por meio do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania para demandas de Direito relativos a indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais da Justiça de 1º e 2º Graus (Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais), e pelo Cejusc da Comarca de Diamantina, com o apoio de parceiros.
Acompanharam a escuta ativa em Raiz o coordenador-adjunto do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais, desembargador Enéias Xavier Gomes; a juíza coordenadora do Cejusc da Comarca de Diamantina, Letícia Machado Vilhena Dias; e o juiz diretor do Foro da Comarca de Guanhães, Otávio Scaloppe Nevony; entre outras autoridades.
Remanescente de quilombo
O Decreto nº 4.887/2003 considera remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”
Em 2015, a comunidade Raiz foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como remanescente de quilombo. Isso foi uma mudança na estratégia que veio ampliar a cidadania da população ali residente.
“No passado, era a invisibilidade que mantinha a comunidade, que vivia de seus modos de vida sem ser incomodada, acessava seu território e apanhava muitas flores.”
Assim lembrou Andreia Ferreira, que também atua na Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex).
Ela contou que, em meados de 2006, com a chegada da monocultura de eucalipto à região, por meio de fazendeiros, a comunidade começou a sofrer os efeitos nocivos da atividade:
“Em 2014, fomos impactados mais diretamente, pois perdemos o acesso ao território. Somos proibidos de apanhar flor, de nadar, de pegar esterco e lenha.”
O reconhecimento do território como remanescente de quilombo, em 2015, veio, segundo Andreia, como uma “luz no final do túnel”: “Viver como povo tradicional a gente sempre viveu, mas entendemos que tínhamos de ser certificados pelo governo para tentar preservar nossos modos de vida.”
Já em 2018, nova garantia para esse grupo vulnerabilizado: Raiz foi reconhecida como Comunidade Apanhadora de Flores Sempre-Viva, cujo sistema de agricultura tradicional, em 2020, tornou-se o 1º patrimônio agrícola mundial presente no Brasil, tendo recebido da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) o título de Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam).
Apanhadora de flores
Claudinei Alves Ferreira, de 42 anos, é uma das apanhadoras de flores da comunidade, além de artesã de capim-dourado. Ela acompanhou a mudança do cenário:
“Esses lugares todos que a gente vê hoje cheio de eucalipto, era tudo lugar que a gente apanhava flor. Mas os fazendeiros chegaram e plantaram o eucalipto, que destruiu tudo.”
Ela revelou que os moradores de Raiz, agora, “têm que ir longe”, porque próximo à comunidade não se encontram mais flores: “A sedinha mesmo, que é o capim-dourado, que a gente usa para tecer, agora temos que comprar por R$ 50 o quilo; antes a gente tinha de graça.”
O artesanato do capim-dourado é feito por artesãos de 11 a 76 anos, entre mulheres e homens, em um conhecimento passado de geração para geração. A tradição do fogo também faz parte dos saberes ancestrais de manejo com a terra e é usada para preservar as sempre-vivas por meio de queimadas controladas, estimulando novas florações.
Entre as tradições da comunidade, estão ainda as formas de cultivo dos quintais, que são agroflorestais. Apesar da restrição de acesso ao território, que impede o cultivo nas “roças de toca”, feitas normalmente em meio à mata nativa, a produção dos quintais é abundante, garantindo soberania alimentar e permitindo a revenda do excedente.
Saberes ancestrais
O cultivo de ervas medicinais também condensa saberes antigos, segundo Erci Ferreira:
“Aprendi sobre as ervas com meus avós, pais e tios, só que eu dei um melhoramento na prática. Antes, a gente tratava com as folhas in natura, hoje, com a mistura do conhecimento tradicional com o moderno, consegui transformar as plantas em remédio.”
A maioria das plantas com as quais ela trabalha são nativas do Cerrado – cerca de 150 espécies, com as exóticas cultivadas em sua horta.
“Temos a prática tradicional recebida dos nossos ancestrais. Respeitamos a fase da lua, a época de rebrota, e a gente tem um jeito de tirar a raiz, para que ela rebrote na época certa, por isso a gente prioriza a lua e o tempo chuvoso”, esclareceu Erci Ferreira.
Usando álcool de cereais, ela extrai as propriedades das plantas e produz as tinturas. Com base nos relatos das pessoas, faz as prescrições. Segundo ela, há cura ali para males diversos: sinusite, depressão, ansiedade, gastrite, refluxo, entre dezenas de outros problemas de saúde, e substâncias voltadas ao controle de triglicérides, colesterol e glicose.
“Não tratamos só nossa comunidade. Já mandamos remédio até para a Etiópia, por meio de um intercâmbio, e para a Suíça, também em função de uma parceria”, revelou Erci Ferreira.
Um cuidado que ela mantém é em relação à segurança das informações, temendo a biopirataria: “Esse conhecimento não é meu, é coletivo, da comunidade.”
Acervos vivos
“Hoje temos a farmácia que transforma plantas medicinais em remédio e mandamos flores e artesanato para o mundo inteiro. Nossa pauta é buscar políticas públicas para manter nossos modos de vida”, frisou Andreia Ferreira, que é doutoranda em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
Além da demanda mais ampla de acesso a territórios, há demandas específicas, as quais foram todas repassadas para os representantes do Judiciário mineiro que estiveram na comunidade para a escuta ativa.
Entre os pedidos, estão a limpeza da comunidade; a manutenção da estrada; o transporte de saúde; o transporte escolar; a instalação de água do poço com nova rede; a drenagem de áreas e questões relacionadas ao fornecimento de energia, entre outras. Além de relatar os problemas, a comunidade recebeu também atendimentos individuais feitos pela Justiça Federal.
Os mais antigos são o acervo vivo dos modos de vida na comunidade. A matriarca do Raiz é Maria Efigênia Perpétuo, de 89 anos, que lembrou:
“Catei muita flor, com minha avó. Enquanto aguentei andar pelo campo, andei. Tomava café, saía pra apanhar sempre-vivas e andava tudo. Quando cansava, ia embora. Quando a gente ia longe, arrumava farinha com açúcar para comer.”
O plantio sempre foi atividade à qual Maria Efigênia Perpétuo se dedicou, ao longo da vida: “Plantei a vida inteira. Comecei a trabalhar com 4 anos e trabalho até hoje. Ajudava meu pai e minha vó a plantar. Dia de semana, meu pai trabalhava de escuro a escuro para o patrão, ganhando uma mixaria que não dava para a gente comer. Não dava para comprar querosene ou arroz. A gente comia o que plantava.”
O irmão dela, José dos Santos Ferreira, de 79 anos, ainda trabalha como apanhador de flor. Ele contou que a vida sempre foi “de muito trabalho”. Dos 9 anos 15 anos, trabalhou em condições análogas à escravidão, “debaixo de chicote”:
“No dia em que meu pai levou eu e meu irmão para trabalhar no garimpo, o patrão entregou na mão dele 200 mil réis.”
Os meninos começaram então a trabalhar já devendo essa quantia. “Levou tempo para pagar tudo. Não podia largar o serviço; se largasse ele vinha atrás e levava a gente, e pai deixava porque estava devendo”, contou José Ferreira.
Ele lembrou que não tinham lugar para dormir nem alimentação suficiente: “De roupa, a gente só tinha um calça curtinha e uma camisetinha, feita de saco de linhagem pela minha mãe. A gente trabalhava assim a semana inteira, não podia tomar banho porque não tinha outra roupa para colocar.”
José Ferreira afirmou que “foi muito judiado” e passou muito frio nessa época. Apesar das dificuldades que perduram, ele disse que, hoje, está tudo muito melhor: “Fui crescendo, as coisas foram melhorando, as meninas começaram a trabalhar, ajudando nosso pai. Hoje, a comunidade é muito unida, graças a Deus.”
No dia 27/11, a ação de cidadania recebeu representantes de nove outras comunidades tradicionais da região no Fórum de Diamantina. Veja matéria.
Presenças
Também participaram da iniciativa representantes, entre outras instituições, do Tribunal Regional Federal da 6ª região (TRF6); das Defensorias Públicas de Minas Gerais (DPMG) e da União (DPU); do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG); da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig); de prefeituras e câmaras municipais locais; e do Projeto Caminhando Juntos (Procaj), de Diamantina.
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