
O surgimento de novas leis e a organização do Estado brasileiro não foram as únicas transformações conquistadas após a Independência do país, em 1822.
A separação de Portugal também permitiu a criação das primeiras faculdades de Direito, fruto da vontade de que o país pudesse formar sua própria intelectualidade, preparando juristas, pensadores, juízes, políticos e bacharéis com ideias desatreladas da metrópole, ainda que influenciadas pelas correntes ideológicas europeias.
Assim, em 11 de agosto de 1827, cinco anos após a Independência, foram criadas as faculdades de Direito mais antigas do Brasil, em Olinda (PE) e São Paulo (SP).
Apesar de acessíveis apenas à elite, as instituições educacionais representaram um avanço para os brasileiros. A formação acadêmica, a partir daquela data, não dependia mais de Coimbra, em Portugal, para onde os estudantes até então precisavam ser enviados.
A quarta matéria da série do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) sobre o Bicentenário da Independência trata, exatamente, do surgimento dos cursos jurídicos no país, além de Minas Gerais. e sua importância para a Nação.

Atraso
O desembargador e professor José Marcos Rodrigues Vieira, integrante da 16ª Câmara Cível do TJMG, explica que, até o momento da Independência, não havia nenhum curso jurídico no Brasil. Segundo ele, a própria história registra que vários dos inconfidentes se formaram em Coimbra.
E não apenas os bacharéis se formavam em Coimbra, mas também os médicos.
“Apesar de a falta de faculdades representarem um prejuízo e atraso para o Brasil, nos recuperamos rapidamente. Desde muito cedo, nas duas faculdades instaladas em Olinda e São Paulo, tivemos grandes juristas. Ambas as instituições foram herdeiras da tradição de serem criadas no âmbito da Igreja Católica. A de Olinda, antes de ser transferida para Recife, funcionou no Mosteiro São Bento. A de São Paulo, no Convento de São Francisco, no chamado Largo de São Francisco, que existe até hoje”, lembra o desembargador.
O magistrado explica que a importância das faculdades no país pode ser observada, ao longo da história, no grande número de bacharéis em Direito que se tornaram presidentes da República, formados a partir das instituições que foram surgindo.
O professor diz também que a evolução dos cursos jurídicos tem reflexos até hoje. “A própria Constituição de 1988, por exemplo, é fruto de grandes debates jurídicos, que receberam contribuição das faculdades de Direito. Temos uma Constituição que foi qualificada como a mais democrática de todas, não só por estar em vigor até hoje, mas pelo debate que envolveu toda a sociedade. Isso revela a consciência da importância da formação jurídica”, frisa.
Legado
Para o professor, esse é um dos legados dos cursos jurídicos: sempre que há uma reforma no país, a academia oferece sua contribuição. “Não há Independência sem liberdade de consciência, sem instrução e sem referências culturais. É no dia a dia que um país mantém sua independência”, diz.
No Bicentenário da Independência, o desembargador acredita que há muitos desafios a serem enfrentados. O principal deles é expandir o raio de influência do Direito brasileiro no cenário internacional.
“Temos um Direito de excelente qualidade, que merece ser referência internacional. O Brasil tem cultura jurídica significativa e criou grandes institutos, com excelentes resultados. É claro que há diversas áreas nas quais o Direito precisa se aprimorar”, observa.
O desembargador José Marcos Rodrigues Vieira lembra que as demandas do dia a dia são variadas e complexas. Contudo, nos últimos tempos, o viés se dirige para os direitos individuais e para a liberdade no seu sentido mais amplo. “A legislação, cada vez mais, garante ao cidadão o exercício dos direitos e a realização de toda a potencialidade da pessoa humana”, explica.
Jurisprudência
Para ele, o Judiciário tem dado a sua contribuição na medida em que o texto legal é influenciado pelo fato concreto. “O julgamento da causa é uma permanente atualização do Direito. Se houver uma comparação da jurisprudência de duas décadas atrás, notaremos os avanços que, muitas vezes, levam à alteração das regras jurídicas”, diz.
O magistrado afirma que a Independência propiciou o sentimento do Direito e, com a criação das faculdades, permitiu o surgimento de grandes juristas e de inteligências diversas, entre as quais Rui Barbosa e Lafayette Rodrigues Pereira.
E, aos poucos, foram surgindo novas faculdades. Ouro Preto (MG) ganhou a sua Faculdade Livre de Direito em 1892, influenciada pelo republicanos. Anos depois, com a inauguração de Belo Horizonte, a faculdade foi transferida para a nova capital. “Nossa Faculdade de Direito é chamada de Casa de Afonso Pena, numa justa homenagem a um de seus criadores”, afirma o professor.
Ele também destaca que, num período em que o Direito brasileiro ainda era incipiente, as inteligências jurídicas já mostravam a dimensão da intelectualidade que estava em formação no país nas faculdades instaladas.

O professor Hermes Vilchez Guerrero, diretor da Faculdade de Direito da UFMG e autor de “O Casarão da Praça da República – A Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais (1892-1930)”, concorda que a Independência teve papel fundamental tanto para o desenvolvimento do Direito brasileiro quanto do Judiciário.
“A Independência seria meramente um ato formal se ela não viesse acompanhada da criação dos cursos jurídicos. Não poderia haver Independência real e efetiva se o Brasil não tivesse sua própria legislação e se não formasse os seus próprios juízes para aplicar a lei, seus promotores, servidores públicos e advogados. Tinha que haver um rompimento”, afirma.
“A criação dessas instituições de ensino era uma necessidade. Era preciso uma faculdade com mentalidade brasileira. Mesmo assim, o surgimento de um pensamento eminentemente brasileiro não ocorreu de imediato. A legislação portuguesa ainda vigorou por muito tempo. Os juízes continuaram seguindo os ritos aprendidos em Coimbra”, conta.
Da mesma forma como as faculdades de Olinda e São Paulo surgiram após a Independência, a faculdade mineira surgiu após a Proclamação da República, como uma resposta às demandas da época.
“De forma gradativa, foi ocorrendo a substituição dos juízes formados em Portugal pelos formados no Brasil”, diz o professor Hermes.
Segundo ele, houve uma grande discussão sobre onde deveriam ser criadas as primeiras faculdades.
“Alguns defendiam a instalação no Nordeste. Outros achavam que essa localização era distante das regiões Sudeste e Sul. Por fim, houve a definição por Olinda, mais tarde renomeada Faculdade de Direito do Recife, e São Paulo. O estudo nessas instituições, contudo, continuou restrito às famílias mais abastadas. Eram cursos pagos e caros. E não era fácil estudar. Um estudante mineiro levava sete dias cavalgando até chegar a São Paulo”, descreve.
O professor conta que não existia faculdade pública. “Muita gente não sabe, mas até 1949 o próprio curso de Direito da faculdade mineira era pago integralmente pelo aluno.”

Valores republicanos
Os primeiros jovens formados nos cursos jurídicos brasileiros, entre 1827 e 1890, eram rebeldes. Eles eram contra a escravidão e a monarquia. Também estavam influenciados pelos valores republicanos e não concordavam com a ascendência da Igreja no Estado. Muitos moraram juntos, criaram associações, montaram jornais e escreviam.
Segundo o diretor da Faculdade de Direito da UFMG, os recém-formados voltavam a Minas Gerais para ocupar lugares de destaque. Como eram oriundos da elite, eles chegavam para atuar na política ou para ser juízes. E eles consideravam que Minas só seria um estado republicano se tivesse sua própria faculdade de Direito.
“Assim surgiu a escola em Ouro Preto, cinco anos antes de Belo Horizonte ser inaugurada”, diz o professor.
Por lá passaram nomes consagrados e que marcaram a história do estado: Afonso Pena, Augusto de Lima, João Pinheiro, Silviano Brandão e Davi Campista, entre outros.
“A genialidade do grupo que fundou a faculdade mineira estava no fato de que eles mantinham suas divergências de lado e buscavam os pontos convergentes. Não fosse assim, a faculdade não teria surgido e não seria duradoura, chegando, em 2022, aos seus 130 anos”, conta.
E as divergências não eram simples. Augusto de Lima e Afonso Pena eram adversários políticos. Afonso Arinos era monarquista. Os demais, republicanos. Afonso Pena era muito católico, mas João Pinheiro era ateu.
“O surgimento das faculdades de Direito fala sobre uma intelectualidade e um conhecimento que começam a se consolidar aqui. Atualmente, nossos estudantes são influenciados pelas personalidades do mundo digital. Naquela época os ídolos eram outros: Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, os positivistas franceses e filósofos. Eram referências que faziam os estudantes pensarem”, explica o professor.
Desafios
Outro diferencial dos primeiros anos das faculdades de Direito é que os estudantes não eram considerados apenas juristas. Eles eram também jornalistas, políticos liberais, sociólogos e pensadores.
“Talvez isso tenha sido o fundamental para o desenvolvimento do Direito no Brasil. Se eles fossem apenas juristas, teriam uma visão pequena do Direito. Mas, com formação e pensamento tão amplos, eles tinham outra percepção da sociedade. Além disso, estudar Direito era sinônimo de status e poder.”
Posteriormente, Ouro Preto ganhou uma escola de farmácia e de minas. “Depois, outras faculdades foram surgindo em Minas Gerais: medicina, farmácia, odontologia. Anos depois, com a criação da Universidade de Minas Gerais, em 7 de setembro de 1927, temos uma nova independência, que é a do conhecimento, porque é isso que a universidade nos dá”, defende o professor Hermes.

No Bicentenário da Independência, o diretor da Faculdade de Direito da UFMG acredita que os cursos jurídicos continuam tendo desafios a serem enfrentados.
“Na minha época de estudante, antes da Constituição de 1988, falávamos muito em Assembleia Nacional Constituinte, liberdade, redemocratização, eleições diretas. A Constituição de 1988 foi um marco. Temos um Brasil muito melhor. Mas hoje vivemos num mundo muito virtual. A pandemia antecipou o futuro. E essas são mudanças radicais”, diz.
Apesar das novas dinâmicas sociais e das transformações, o diretor da Faculdade de Direito da UFMG afirma que, lamentavelmente, alguns desafios se repetem para as novas gerações de estudantes.
“Precisamos assegurar que a democracia não acabe, que o voto livre tenha continuidade, que as eleições sejam democráticas e que permaneçamos acreditando nas instituições. Temos hoje poderes, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) atuando de forma independente. O Direito só existe onde há liberdade. Assim, precisamos continuar a luta para assegurar o exercício da igualdade”, afirma.
O professor defende ainda que os brasileiros estejam atentos às mudanças trazidas pela tecnologia, sem perder de vista o lado humano do Direito.
“O Direito não é uma área teórica. Como diz Humberto Theodoro Júnior, que foi meu professor, que é professor emérito da UFMG e que foi desembargador do TJMG, se você estuda o que não tem aplicação prática na vida das pessoas, você estuda uma coisa que tem pouca serventia.”
Leia nesta quarta-feira (7/9) sobre a Independência do Brasil e o Código Criminal de 1830.
As matérias especiais sobre o Bicentenário da Independência começaram a ser publicadas no dia 1º/9 no Portal TJMG. Já foram tratados os seguintes temas: Reflexões sobre a Independência e o Brasil do futuro, o nascimento do Direito no Brasil e as constituições.
Diretoria de Comunicação Institucional – Dircom
Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG
(31) 3306-3920
imprensa@tjmg.jus.br
instagram.com/TJMGoficial/
facebook.com/TJMGoficial/
twitter.com/tjmgoficial
flickr.com/tjmg_oficial