Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Código Criminal de 1830 foi marco importante na organização do Brasil

Quinta matéria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o Bicentenário da Independência aborda aplicação das leis


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Penas terríveis e brutais, que incluíam açoites, degredo, mutilações, enforcamento, esquartejamento e exposição dos restos mortais até o apodrecimento.

De 1603 a 1830, a lei em vigor era um retrato de uma justiça de barbárie, que só foi alterada oito anos após a Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822. Ao declarar a separação do Brasil de Portugal, Dom Pedro I abriu caminho para que uma nova legislação criminal fosse elaborada, abarcando ideias mais humanitárias para o cumprimento das penas. E, em 1830, o Brasil ganhou seu primeiro e único Código Criminal, marco importante para a organização e a aplicação da lei no jovem império.

Na quinta e última matéria da série que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) preparou em comemoração ao Bicentenário da Independência, o tema é a justiça criminal e o Código Criminal de 1830.

Progresso

A juíza Daniela de Freitas Marques, da Justiça Militar de Minas Gerais, que é também professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no Departamento de Direito e Processo Penal, diz que, quando o Código Criminal entrou em vigor, trouxe consigo várias ideias do século XVIII, que encaravam o Direito Penal de uma forma mais humanístico-humanitária.

“É o século do nascimento dos direitos fundamentais. Já no século XIX, há uma visão de que o mundo vai progredir”, diz a professora.

Até 1830, contudo, a colônia e, posteriormente, o novo império são submetidos ao que estava estabelecido nas chamadas Ordenações do Reino.

“As penas eram terríveis. Entre elas estavam, por exemplo, a morte natural para sempre e a morte natural por esquartejamento. Os inconfidentes foram condenados com base nessa legislação. O Código Criminal do Império vem para abolir essas penas cruéis. Apesar do surgimento da pena privativa de liberdade, o código consagra a pena de morte, que só deixaria de ser aplicada juridicamente no Brasil por Dom Pedro II, após um erro judiciário”, conta a juíza.

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Morte de Tiradentes por enforcamento retrata como eram as leis portuguesas ( Crédito : Divulgação/TJMG )

No caso conhecido como A Fera de Macabu, um fazendeiro foi condenado à pena de enforcamento por um crime ocorrido em 1852. Contudo, sua culpa nunca ficou comprovada. A professora Daniela de Freitas Marques diz que esse erro judiciário mostra que, mesmo com um Código Criminal que era considerado avançado para a época, não havia garantia que as práticas penais fossem avançadas.

“Temos um hiato entre a norma posta, o direito legislado e as práticas judiciárias. Quer dizer, tínhamos uma nova legislação, mas a forma como a pena continuava cruel”, diz.

A juíza explica que, em muitos casos, a justiça penal aplicada no Brasil era a dos senhores da terra e dos donos do poder, e não a que estava prevista na legislação.

“Quando a Constituição de 1824 foi outorgada, ela previa em seu Artigo 179, inciso XVIII, que o Brasil organizaria códigos civil e criminal fundados nas sólidas bases da justiça e da equidade. O país estava inserido nesse movimento liberal, de novas ideias que varriam a Europa. Porém, o Código Criminal só chegaria em 1830, e o civil, em 1916”, conta a juíza.

Rebeliões

Ela ressalta que, nesta época, o Brasil caminhava com a Europa, mas ainda mantendo uma estrutura escravocrata.

“O século XIX é marcado por diversas rebeliões de escravos no Brasil. O medo dos senhores de terra e dos donos de escravos era que os escravos promovessem rebeliões e matassem seus senhores. Tanto que, em 1835, surge a Lei nº 4, que estabelece a pena de morte para os escravos que atentassem contra a vida do senhor e de seus familiares”, diz.

A juíza chama a atenção para o fato de que o Brasil só teve um Código Criminal – o do Império, que recai sobre o crime. Depois dele, o país editou os códigos penais de 1890 e de 1940, nos quais o foco passou a ser a pena. “O código atualmente em vigor é de 1940, mas já passou por várias modificações”, observa.

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Primeiro Código Criminal brasileiro, ainda nos tempos do Império ( Crédito : Divulgação/TJMG )

A professora afirma que, sempre que há uma mudança estrutural na sociedade, como a que ocorreu em 1822, isso se traduz em mudanças legislativas como as que ocorreram no Brasil ao longo dos anos.

“Os códigos em geral vieram em períodos de centralização de poder. O Código Criminal do Império representou um avanço, porque as Ordenações do Reino deixaram de vigorar. Temos depois, em 1832, o Código de Processo Penal de Primeira Instância, que é criado para dar mais organização aos procedimentos. Nesse contexto, as leis penais e processuais vêm para dar mais poder ao Império”, lembra.

Em 1841, é garantido o poder ao chefe de polícia. Em 1871, surge o inquérito, que é uma forma de consolidar um poder central e unitário. Para a professora, a sociedade brasileira do século XXI, mais complexa, é bem distinta daquela do século XIX, escravocrata e rural.

“O desafio do Brasil naquela ocasião e ainda hoje é o de implementar a igualdade e de deixar de ser uma sociedade com tanta exclusão. O Direito Penal não sustenta bandeiras e não implementa direitos; ele não nos faz cidadãos ou pessoas libertas, originais, seguras e capazes de construir o próprio destino. Ele é sempre o fim da caminhada”, lembra.

Resposta

A juíza destaca que a norma punitiva é sempre fruto de um fracasso e de uma perda, apesar do seu conteúdo de garantias. “O Direito Penal significa que algo foi quebrado e que, muito arduamente ou talvez jamais, poderá ser reconstruído. Como o escritor Tobias Barreto dizia no século XIX, a pena é uma resposta insuficiente para o problema do crime”, afirma.

A partir da década de 1960, a juíza disse que que o Código Penal passou a ser utilizado como uma espécie de bandeira para a implementação de direitos, o que, em sua visão, não é adequado.

“A mulher, por exemplo, passa a ser protegida pelo Direito Penal, com leis como a Maria da Penha, com a definição do feminicídio. Isso garantiu visibilidade, o que é bom. Mas, por outro lado, é muito pouco, porque o Direito Penal só atua depois que já ocorreu a violação do direito, quando já houve o crime. Isso é uma limitação”, afirma.

Penas imprescritíveis

O desembargador Marcos Henrique Caldeira Brant, superintendente da Memória do Judiciário Mineiro (Mejud) do TJMG e membro do Instituto Histórico a Geográfico de Minas Gerais (IHGMG), reforça que o Código Criminal do Império substituiu as Ordenações do Reino até então em vigor.

Estudioso da história do Direito e da Justiça, o magistrado lembra que, posteriormente, surgiram o Código Penal de 1890 e o Código Penal de 1940, que passou por inúmeras reformas, em 1969, 1978, 1981, 1984, 1990, 1996, 1997, 1998, 2000, 2003, 2005, 2006, 2007, 2009, 2011, 2012, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2021 e 2022.

“O Código de 1830 se dividia em duas partes, com dois títulos: a parte geral, não incriminatória, e a parte especial, incriminatória. Curiosas eram as penas previstas, entre as quais estavam a morte por enforcamento, de galés (trabalhos forçados), prisão com trabalho, prisão simples, banimento, degredo, desterro, multa e suspensão de emprego”, diz o superintendente da Mejud, que é também integrante da 16ª Câmara Cível do TJMG.

O desembargador também chama a atenção para o fato de que as penas eram imprescritíveis. “O Código Criminal de 1830 foi a primeira codificação penal brasileira alicerçada na justiça e na equidade. Ele teve suas linhas mestras pautadas na Constituição de 1824, sob a ótica dos ideais iluministas”, explica o magistrado.

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Deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos ( Crédito : Reprodução/Internet )

Mudança de cultura

O Código Criminal encantou a cultura jurídico-política de sua época e teve expressiva repercussão no meio jurídico da Europa, impressionando juristas e legisladores pelas ideias avançadas que continha. “Vários juristas europeus fizeram questão de aprender a língua portuguesa para estudar o Código, principalmente o alemão Mittermayer. O Código também foi traduzido para o francês, por Victor Fouché.”

O superintendente da Mejud afirma ainda que o Código trouxe ao mundo jurídico-normativo várias inovações pela sua originalidade.

“Foi, em toda América Latina, a primeira codificação penal independente e autônoma a influenciar a legislação espanhola nos países da América. O documento foi de autoria do deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos, que apresentou um projeto, e do deputado português Clemente Pereira, da província do Rio de Janeiro, que apresentou outro”, conta o magistrado. Os dois projetos foram submetidos a uma comissão mista que, após muita discussão, deu redação definitiva ao projeto.

Atualmente, está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 236, de 2012, que trata do Novo Código Penal. O projeto se encontra na fase de emissão de relatório.

Nacionalidade

O professor da UFMG Luciano Mendes, do Portal do Bicentenário (https://portaldobicentenario.org.br/), acrescenta a necessidade de trabalhar não apenas no âmbito do Direito, para que as novas e também as velhas gerações se apropriem dos símbolos e efemérides que constituem a nacionalidade.

“Temos que fazer uma discussão séria sobre os processos pelos quais as simbologias foram construídas, inclusive mostrando a violência que existiu e a exclusão de parte significativa da população desses processos, promovendo uma ressignificação. Para isso, precisamos estabelecer uma política de memória”, defende.

Ele lembra que o popular quadro de Pedro Américo é apenas uma das memórias produzidas sobre o 7 de setembro, que tem também outras representações e sujeitos, inclusive os derrotados e excluídos. “Estabelecer as diversas narrativas e abranger as histórias regionais é importante e faz parte da cultura democrática e do regime democrático”, conclui.

As matérias especiais sobre o Bicentenário da Independência começaram a ser publicadas no dia 1º/9 no Portal TJMG e abordaram os seguintes temas: Reflexões sobre a Independência e o Brasil do futuro, o nascimento do Direito no Brasil, as constituições e o surgimento dos cursos jurídicos no Brasil.

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