
“Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. (...) Sei que canto. E que a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada”. Os trechos emblemáticos do poema “Motivo”, de Cecília Meirelles, podem ser compreendidos e sentidos de formas múltiplas, mas há uma linha interpretativa quase unânime após sua leitura: a de que cantar é uma expressão de estar vivo, em plenitude.
Experimentar esse sentimento é algo que tem um grande valor, em especial para as pessoas privadas de liberdade. Sensação que tem sido vivenciada por detentos do Presídio de São Lourenço (sul de Minas), por meio do Coral Vozes da Cela. O grupo surgiu com esse objetivo: propiciar a quem está encarcerado a possibilidade de, por meio da música e do canto, sentir-se mais vivo, livre e valorizado, de forma a humanizar o cumprimento da pena e assim contribuir para a ressocialização do indivíduo.
O grupo foi criado em 18 de maio de 2008, dentro da Escola Estadual São Francisco de Assis, que funciona no interior do presídio. Foi iniciado como atividade extracurricular da instituição educacional, que atua como parceira da iniciativa, cedendo sala para os ensaios e complementando os conhecimentos necessários para as apresentações.
Os professores, por exemplo, ensinam aos presos o significado e a pronúncia de cada palavra, no caso das canções em outros idiomas – o repertório do coral inclui músicas em hebraico, italiano, alemão, grego e latim, entre outros.
Elemento integrador
O diretor de Atendimento e Ressocialização do presídio de São Lourenço e maestro do coral, José Henrique Martins, é testemunha do poder da experiência na vida dos presos. “A música ajuda na transformação daqueles que estão privados de liberdade ao funcionar como elemento integrador deles com a sociedade, facilitando, assim, o resgate dos valores éticos e morais, da autoestima, do comprometimento e da responsabilidade, dentro do processo de ressocialização”, diz.
Colecionando vários relatos do valor do canto na vida dos presos, o maestro se sentiu especialmente tocado durante o Concerto de Gala em comemoração aos dez anos da fundação do coral, em maio de 2018. “Nossos reeducandos mostraram que são capazes de superar os momentos de privação de liberdade. A música foi ao encontro de cada um, com apresentação de peças clássicas, sacras e populares. Foram meses de ensaios e aulas com professores de línguas estrangeiras”, contou.
De acordo com o maestro, para essa apresentação os presos precisaram aprender canções em idiomas como italiano, inglês, alemão, grego, latim, hebraico e dialetos africanos. Foi um esforço colossal, ao longo de várias semanas, “para fazerem uma apresentação nota mil, que contou com a participação especial da soprano internacional Patricia Vilches”, lembra. “Fico muito feliz quando um familiar desses reeducandos vem me agradecer por esse trabalho de ressocialização por meio da música”, afirmou Martins.

Caminho da ressocialização
Declarando-se “fã da música popular brasileira e de obras clássicas”, Magnus Narcizo dos Santos, de 33 anos, cumpre pena no regime fechado no Presídio de São Lourenço. Há cinco meses entrou para o grupo, que no momento é integrado por outros nove presos.
“Gosto muito do coral, mas nunca imaginei fazer parte. Já ouvia falar dele na rua antes de ser preso”, conta. Magnus declara sua gratidão por poder fazer parte do Vozes na Cela, contando que isso representa um orgulho para ele, trazendo momentos de felicidade genuína e elevando sua autoestima.
“Em muitos lugares em que o coral se apresentou, aqui em São Lourenço, minha família esteve presente”, conta. Para ele, isso é a expressão de felicidade: “Vejo meus familiares felizes por eu estar trilhando o caminho da ressocialização”, declara.
O coralista revela ainda que a sensação de cantar para um público numeroso, em diferentes espaços, e ser aplaudido ao final das apresentações, é única, pois mostra que a sociedade acredita na recuperação de quem está atrás das grades.
“O coral e a música são oportunidade para quem quer sair dessa vida do crime. Eu sou um reeducando importante para o coral, e o coral é importante para mim”, declara Magnus, também responsável por cuidar dos uniformes do grupo, atividade que faz com esmero. “Lavo e passo. Deixo tudo preparado”, diz o preso.
Remição da pena
Em 2015, a iniciativa foi finalista do Prêmio Innovare, que reconhece e premia práticas que ajudam a melhorar a qualidade do atendimento da Justiça no Brasil. O juiz da Vara Criminal e da Infância e da Juventude de São Lourenço, Fábio Garcia Macedo Filho, foi o responsável pela inscrição do Vozes da Cela na premiação. Cabe a ele autorizar as apresentações fora do presídio.
“A recuperação e a ressocialização dos condenados, por meio da música como o canto coral, proporciona aos participantes e a todos os reeducandos da unidade prisional momentos de harmonia e paz interior, alimenta o espírito, incute calma e serenidade, toca o fundo da alma. É sem dúvida uma experiência bem-sucedida e que vem se expandindo a inúmeras outras unidade”, declara o juiz.
O magistrado conta que a iniciativa recebe recursos de penas pecuniárias, por meio do Conselho da Comunidade, e que os benefícios para os recuperandos são muitos. Entre eles, está o de recuperar “a autoestima e o respeito da família e dos concidadãos, com apresentações durante cultos religiosos, festivais locais, eventos de grande porte, com autoridades de todo o estado e também nacionais”, enumera, acrescentando que isso permite ao reeducando dar “um novo sentido à vida”, fazendo ressurgir “um cidadão de bem”.
Apresentações
Com um repertório eclético, da MPB ao clássico, o coral, que já se apresentou diversas vezes na Basílica de São Lourenço, prepara-se agora para o Concerto do Décimo Primeiro Aniversário de fundação do grupo, a se realizar em 24 de maio, e para o Festival da Canção Prisional (Festipri), que acontecerá em São Lourenço, no dia 25 do mesmo mês.
O grupo já acumula mais de 500 apresentações em sua trajetória, com destaque para a participação no Festival Internacional de Corais de Belo Horizonte, apresentações no Teatro Municipal de Ouro Preto, no Teatro Municipal de Sabará e na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na abertura oficial da Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada em 2009, e no Centro de Convenções do Hotel Ouro Minas em Belo Horizonte, entre outras.
Em mais de dez anos de atividade, já passaram pelo coral mais de 120 presos – os integrantes têm direito à remição de pena. A cada 12 horas de atividade do coro, é abatido um dia da pena.
Reconhecimento como combustível
“Gosto muito de cantar. Quando adolescente, eu cantava funk em festas de bairro, em bailes e em showmícios”, revela Jeferson Rodrigues Lopes, que integra o coral há três anos. Cumprindo o regime fechado no presídio, ele afirma nunca ter duvidado da própria capacidade de aprendizagem. “O que eu não imaginava era ter a oportunidade de fazer parte do Coral Vozes da Cela”, diz.
Para ele, a música representa “festa, dança, alegria, amizade”, e o coral simboliza “oportunidade, confiança, força de vontade, superação, companheirismo, reconhecimento e, principalmente, o recomeço”. Quando os familiares assistiram a uma de suas apresentações, ele se sentiu emocionado. “Eu nunca tinha feito algo do qual eu gostaria tanto que eles estivessem presentes”, afirmou.
Cada aplauso que ele recebe após as apresentações vale muito. “Mais que qualquer coisa. Somente pelo fato de estarmos cumprindo pena, somos muito mal vistos pela sociedade, e quando o público reconhece nosso esforço e nos aplaude, mostra que estamos no caminho certo”, avalia.
Para ele, “o combustível” para continuar nesse caminho da música é o reconhecimento. “Esse reconhecimento vai para nosso maestro, que a cada dia que passa, coloca em nós uma confiança muito grande", diz Jeferson, revelando gratidão pela oportunidade.

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