
Era apenas mais uma audiência de conciliação envolvendo caso de violência doméstica e familiar no Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da Comarca de Brumadinho. Uma assistida pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), com medida protetiva, está numa sala; o ex-marido dela, agressor, em outra. A sessão por videoconferência começa. Mas, ao ouvir a voz do antigo companheiro, a mulher tem uma crise de pânico.
Agredida pelo companheiro, ela havia saído de casa somente com a roupa do corpo, depois de ver todas as suas vestimentas queimadas e rasgadas. A violência abrangeu várias esferas: física, moral, psicológica e patrimonial. A mulher quer abrir mão de todos os direitos para encerrar logo a audiência e nunca mais ter contato com o ex-marido. Mas é orientada, não faz acordo e a audiência se encerra. A vítima se mantém, contudo, em estado de choque.
A conciliadora e mediadora do Cejusc de Brumadinho Maria Eduarda Santos Almeida e a psicóloga da DPMG Brênia Oliveira presenciavam situações como essas diariamente. Naquele dia, elas prestaram acolhimento à mulher e conseguiram acalmá-la. A psicóloga a encaminhou para a unidade básica de saúde mais próxima e, na sequência, teve início o acompanhamento psicológico. Mas as profissionais ficaram especialmente impactadas pelo contexto que mais uma vez testemunharam.
Aquela sessão, que revelou inúmeras camadas de sofrimento pelas quais as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar passam, impulsionou a criação do projeto "Caminho de Reconstrução: apoio, escuta e transformação", idealizado por Maria Eduarda e Brênia e desenvolvida pelo Cejusc de Brumadinho, em parceria com a DPMG. A iniciativa acaba de ganhar o 2º lugar no "Prêmio Destaque: prevenção e erradicação da violência contra a mulher nas populações vulneráveis", dentro do "V Prêmio Juíza Viviane Vieira do Amaral", promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A premiação visa reconhecer e dar visibilidade a ações de prevenção e enfrentamento ao fenômeno da violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas. O CNJ selecionou, ainda, iniciativas e boas práticas em seis categorias: Tribunal, Magistrados/Magistradas, Atores/Atrizes do Sistema de Justiça Criminal, Organizações Não Governamentais, e Mídia e Produção Acadêmica. A solenidade de entrega dos prêmios será realizada no dia 26/8, em Brasília (DF).

Caminho de reconstrução
De acordo com a servidora Maria Eduarda, o projeto "Caminho de Reconstrução: apoio, escuta e transformação" foi idealizado para levar às mulheres acolhimento e informações sobre direitos e sobre a rede de proteção e atendimento à qual elas podem ter acesso. A ideia foi apresentada ao então juiz coordenador do Cejusc de Brumadinho, David Miranda Barroso, que o apoiou, de imediato, e ofereceu a estrutura do Centro Judiciário. Em 21/2 de 2025, o projeto foi iniciado. Dezesseis mulheres participaram da 1ª turma, a maioria delas entre 28 e 45 anos.
"Nosso intuito foi oferecer amparo psicológico e jurídico e permitir a reconstrução da autoestima delas. Abrimos as inscrições para o curso, divulgamos a proposta e esperamos que as mulheres se inscrevessem, pois elas mesmas tinham de reconhecer que precisavam daquele amparo e acolhimento. Isso era importante também, porque o projeto exigia um vínculo de 12 encontros, um por semana, ao longo de cerca de três meses", explicou Maria Eduarda.
Referências femininas
O juiz David Barroso, hoje atuando na Comarca de Governador Valadares, esteve no primeiro encontro. "Foi uma participação rápida, pois eu, na condição de juiz, homem, entendi que meu papel ali era somente mostrar que a autoridade do Judiciário estava prestando apoio ao projeto. Mas vi duas mulheres chorando, depois me relataram que elas nunca imaginaram que um projeto como aquele teria a participação de um juiz".
Esse relato, segundo o magistrado, teve forte impacto sobre ele. "Isso me deu mais vontade de trabalhar, de me empenhar, de ajudar no desenvolvimento do projeto", disse. Quando a servidora Maria Eduarda e a psicóloga Brênia apresentaram-lhe a ideia, ele se colocou à disposição, mas avaliou que se tratava de um projeto "de mulheres, para mulheres". "Referências femininas foram as convidadas para as palestras no curso", frisou.
Ao escolher as palestrantes e as temáticas dos encontros, o objetivo, segundo Maria Eduarda, "foi fazer as inscritas no curso reconhecerem que nunca é tarde para recomeçar e que elas podem alcançar lugares inimagináveis a partir do momento em que passam a se priorizar".

Círculo de diálogo
Ao longo do curso, as participantes receberam informações sobre a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006); medidas protetivas; ciclo da violência; direito, fala e escuta ativa; formas de romper o silêncio e reconstruir a autoestima; a força da mulher, identidade e potencial; relacionamentos saudáveis; o cuidado de si e dos outros; superação do medo e da culpa; estratégias de enfrentamento; reinvenção da vida; e planejamento para o futuro.
A psicóloga Brênia, capacitada em justiça restaurativa (JR), explicou que o projeto foi baseado em encontros com o desenvolvimento de círculos de diálogos, que permitiram que as inscritas se expressassem em relação aos traumas sofridos. "O acolhimento em grupo dá às mulheres o sentimento de pertencimento; elas veem que o problema não é só delas, pois atinge também outras pessoas", afirmou.
De acordo com a psicóloga, as mulheres que participaram da 1ª edição do "Caminho de Reconstrução" criaram um laço entre elas. "Isso foi extremamente importante, porque, quando estão em situação de violência doméstica, elas ficam muito isoladas; um dos sintomas do contexto que vivenciam é o isolamento causado pelo agressor", disse.

Transformações visíveis
"As transformações pelas quais as mulheres passaram foram visíveis. Nossas inscritas chegaram totalmente vulneráveis, e isso transparecia muito também na imagem delas. Nos primeiros dias, elas vinham de chinelinho e choravam sem parar. Os dias foram passando, e aparecia um cabelo mais arrumado, um salto, algumas começaram a se maquiar. Houve um resgate do autocuidado", pontuou Maria Eduarda.
A defensora pública da Comarca de Brumadinho Juliana da Silva Martins, que atua na área da família, sucessões e defesa das vítimas de violência doméstica, também destacou ter sido visível a metamorfose pelas quais as participantes do curso passaram. "As mulheres chegaram duvidando da capacidade delas, com medo de julgamentos. No espaço que foi criado, elas se sentiram à vontade para falar", afirmou.
Diante do sucesso da iniciativa, uma segunda turma do curso, para 15 mulheres, será iniciada em 12/8 e já está com inscrições abertas. "Queremos agora focar em educação em direitos, para que elas conheçam de fato toda a Lei Maria da Penha e toda a rede de proteção, pois isso trará mais segurança para que elas saiam do ciclo de violência. Teremos no curso a participação da rede – Polícias Civil e Militar e órgãos de assistência social", contou a defensora.

Reconhecimento nacional
“Projetos como esse, que visam a empoderar vítimas de violência doméstica, contribuindo para que superem traumas e reconstruam suas vidas, são fundamentais e precisam ser valorizados. É por meio de ações como essas que seremos capazes de garantir um futuro onde todas possam viver com dignidade e liberdade. Parabenizo as idealizadoras da iniciativa, que tem todo o nosso apoio, pela conquista desse destacado prêmio", declarou a superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) do TJMG, desembargadora Evangelina Castilho Duarte.
A juíza Renata Nascimento Borges afirmou que, para o Cejusc de Brumadinho, atualmente sob sua coordenação, o prêmio "é motivo de profunda honra". Na avaliação dela, o reconhecimento do CNJ reforça a relevância de iniciativas que extrapolam o julgamento dos processos e aproximam o Poder Judiciário da comunidade, em uma atuação preventiva e educativa.
"Nosso trabalho busca oferecer não apenas respostas jurídicas, mas também caminhos de conscientização, acolhimento e transformação social, especialmente junto às mulheres em situação de vulnerabilidade. Acreditamos que prevenir a violência doméstica é tão essencial quanto responsabilizar seus autores, e este prêmio reafirma nosso compromisso diário com a promoção de uma sociedade mais segura e igualitária", pontuou a magistrada.
Para o juiz David Barroso, projetos como esse vão, aos poucos, conscientizando a sociedade e produzindo mudanças. "O Judiciário está sempre abarrotado e atende de forma reativa: recebe as demandas e as responde. Nessa iniciativa, atuamos de forma proativa, conscientizando essa mulher de que ela precisa reagir e se defender. Mostramos ainda que temos mecanismos para oferecer a ela", avaliou.
O magistrado destacou o protagonismo da conciliadora Maria Eduarda na concepção e realização do projeto, sendo seguido pela juíza Renata Borges, que também parabenizou a colaboradora "sem a qual essa iniciativa de sucesso não teria sido criada".
Propósito de vida
Brênia afirmou ter recebido a notícia da premiação "com muita alegria". "Assim, o projeto ganha visibilidade e pode alcançar mais mulheres, além de trazer um foco para Brumadinho, uma cidade que, infelizmente, teve um expressivo aumento da violência doméstica", pontuou.
Segundo a psicóloga, esse fenômeno ocorreu principalmente depois do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em 2019. "A cidade ficou adoecida e a população aumentou muito – antes havia poucos habitantes e todos se conheciam. Após esse evento, muitos deixaram de trabalhar, ficaram vivendo seu luto, alguns se tornaram depressivos e se renderam aos vícios. Isso aumentou a agressividade, principalmente masculina", afirmou.
Maria Eduarda espera que a iniciativa seja expandida para outras comarcas. "Esse projeto se tornou um propósito de vida para mim e, acho, também para a Brênia. Quando fiquei sabendo da premiação, foram vários os sentimentos, sobretudo, o de gratidão às minhas inscritas, porque isso foi por elas; sem elas, não teríamos alcançado esse reconhecimento. Sou grata por elas terem acreditado no projeto e não terem desistido delas mesmas. O Judiciário pode apoiá-las, mas elas estão caminhando com as próprias pernas. O mérito é delas, pois é muito difícil sair do lugar em que elas se encontravam", concluiu.
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