Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Em projeto inédito, TJMG atua na comunidade quilombola Moinho Velho

Cejusc Povos e Comunidades promoveu escuta ativa com lideranças quilombolas


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Escuta ativa das demandas e desafios da comunidade foi objetivo de visita do TJMG e de instituições parceiras (Crédito: Riva Moreira / TJMG)

“Se deixar uma roupa embaixo da torneira sai tudo vermelhinho”, conta Margarida Faustina da Silva, 78 anos, a moradora mais idosa da comunidade quilombola Moinho Velho, em Senhora do Porto, no Vale do Rio Doce. O marido, Ramon Silva, aponta para a horta ressecada no quintal. “Minha couve não era assim. A gente pegava água limpa no córrego”. Há cerca de 10 anos, o ribeirão que corre abaixo do quilombo está poluído. “Jogaram rede de esgoto em cima. É uma tristeza, só Deus”, lamenta Cristiana Soares da Silva, atual presidente da associação que representa os 60 quilombolas, de 27 famílias, que têm suas raízes ali.

A falta de água potável é um dos problemas enfrentados pelos moradores da comunidade quilombola Moinho Velho, que recebeu, no dia 17/9, um projeto pioneiro do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania para demandas de direito relativos a indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais da Justiça de 1º e 2º Graus (Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais), vinculado à 3ª Vice-Presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

O coordenador adjunto do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais, desembargador Enéias Xavier Gomes, destacou a participação inédita de diversos órgãos públicos na visita aos quilombolas:

“Conseguimos reunir todos os atores que podem, de fato, ajudar a mudar a realidade social das pessoas que vivem não só na comunidade de Moinho Velho, mas em diversas outras, porque estavam presentes lideranças quilombolas da região. Foi uma oportunidade efetiva de escuta ativa das demandas das comunidades. E com isso foi possível perceber as grandes questões que os incomodam, e o cenário, em que há um déficit da presença estatal. A partir disso, temos instrumentos efetivos, nós todos, do setor público, para tentar de fato trazer para a vida dessas pessoas um mínimo de dignidade.”

Escuta ativa

Durante toda a manhã, lideranças quilombolas da região participaram de um evento no Fórum Doutor Brito da Comarca de Guanhães. O diretor do Foro, juiz Otávio Scaloppe Nevony, idealizador do projeto, convidou 16 lideranças quilombolas para compor a mesa de honra e proporcionar um momento de escuta ativa para representantes do poder público em relação aos principais problemas vivenciados pelos quilombolas em Senhora do Porto, Sabinópolis, Dom Joaquim, Itabira, Água Branca, Rio Vermelho, Peçanha e Virgolândia.

Acompanharam a iniciativa do TJMG representantes do Tribunal Regional Federal da 6ª Região  (TRF6), da Defensoria Pública da União (DPU), da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), da Subseção de Guanhães da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais (OAB-MG), da Prefeitura de Senhora do Porto, da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Empresa de Assistência Técnica e Expansão Rural de Minas Gerais (Emater), entre outros. 

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Atendimentos jurídicos pontuais também ocorreram durante as atividades na comunidade (Crédito: Riva Moreira / TJMG)

À tarde, os representantes do poder público conheceram a comunidade quilombola. Além de obter a resolução imediata de alguns problemas, como a ligação de um padrão de luz para bombear água de poço, os moradores puderam fazer consultas de demandas pessoais no Judiciário, como questões relativas a reconhecimento de paternidade, pensão alimentícia e aposentadoria.

A ideia é expandir o projeto pioneiro do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais para outras comarcas, propõe o desembargador Enéias Xavier Gomes:

“No Moinho Velho, pudemos ouvir das pessoas aquilo que lhes falta. Conseguimos trabalhar tanto as demandas coletivas, como falta de luz elétrica e de água, quanto as de cunho individual, como certidão de nascimento e divórcio. Foi um dia muito produtivo em uma atuação importante, inclusive, para podermos replicar essa prática em outras comarcas e comunidades.”

O juiz Otávio Nevony reforça o processo de consulta à comunidade em todas as etapas: “A gente fez audiências preliminares e buscou o consentimento dos quilombolas. A partir da autorização e das demandas deles, tentamos adaptar nosso formato de ação para buscar soluções. A gente precisava deste momento para todos falarem, porque o fato de todo mundo na comunidade ver o problema é uma força vinculante. É algo tão forte quanto uma determinação judicial em uma sentença.”

Reparação Histórica 

O desembargador Enéias Xavier destaca a necessidade da busca por reparação histórica para comunidades quilombolas, que descendem de pessoas escravizadas no período colonial e enfrentam graves dificuldades para efetivação de direitos de cidadania, apesar da proteção prioritária garantida pela Constituição Federal de 1988.

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O desembargador Enéias Xavier é o coordenador adjunto do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais do TJMG (Crédito: Riva Moreira / TJMG)
“Estamos aqui hoje para ouvir e aprender com a comunidade e levar soluções. Existe uma dívida histórica com as comunidades quilombolas e este é o momento de as instituições começarem a buscar essa reparação. A gente precisa minimizar os problemas que vocês vivem no dia a dia.”

“O que buscamos é a implementação de cidadania. É importante se antecipar, com os outros parceiros, aos conflitos antes da judicialização. Estamos conversando com a comunidade para trazer soluções para problemas históricos sem o custo e a demora do processo”, projeta o juiz Otávio Nevony.

A defensora pública estadual Ana Cláudia Alexandre reforça o contexto histórico da iniciativa do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais:

“Estamos ainda por reconhecer nossa identidade como povo brasileiro. Um povo formado por um processo de colonização, que sofreu uma invasão, na qual aqueles povos originários que estavam aqui foram dizimados. Tivemos 300 anos de escravização e uma diáspora africana, pessoas que foram violentamente retiradas de seu país para vir constituir essa sociedade, e que até hoje não têm reconhecidos os seus direitos. É uma questão relevante para que o Sistema de Justiça reconheça e se una.”

Em meio às dificuldades, a quilombola Cristiana Soares da Silva cita seus ancestrais: “Estou muito emocionada pelos meus antepassados. Hoje vejo minha comunidade começando a andar. Os antepassados não tiveram estudo, não viram isso acontecer. Os mais velhos tinham até perdido a esperança. Agora surgiu uma luz, graças a Deus.”

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O juiz Otávio Nevony ressalta a necessidade de ouvir a  comunidade quilombola e lhe dar visibilidade (Crédito: Riva Moreira / TJMG)

Jesus Rosário, ex-presidente da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais, resume a luta dos povos pela titulação da terra: “Quero falar da nossa honra de estar aqui em uma instituição de Justiça de cabeça erguida. Talvez sejamos a primeira geração de não analfabetos em nossas famílias, que precisam traduzir o que está escrito em uma lei. São povos sequestrados há 300 anos que ainda não tiveram seu direito cumprido. E isso não mudará enquanto não pensarmos na titulação do território.”

O Moinho Velho foi certificado como Comunidade Quilombola em 2014 pela Fundação Palmares. O processo de titulação da terra está em curso no Incra. Atualmente, o órgão analisa cerca de 300 processos de regulação fundiária de comunidades quilombolas em Minas. No Censo 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reconhecia 18 territórios titulados pelo Incra no Estado.

Moinho Velho

Trinta minutos por estrada de terra separam o Moinho Velho da rodovia asfaltada que liga Guanhães a Senhora do Porto. Na entrada da comunidade, à direita, fica um restrito campinho de futebol, no qual crianças costumavam brincar, e que é vizinho a um descampado onde os quilombolas reivindicam espaço para uma horta comunitária e um galpão para comercializar a produção. No entanto, conflitos com vizinhos impedem o uso – os moradores denunciam o uso de tratores para danificar a terra. “Estava limpinho, mas um camarada mandou passar trator”, afirma um deles.

Francisco Antônio, de 74 anos, mora em um trecho elevado e teme que um dos poucos postes ali, já arqueado, desabe sobre a vegetação: “Aquele poste está caindo, a gente fica com medo de incêndio”. Enquanto isso, à noite, a escuridão toma conta por falta de condições adequadas. “Os meninos chegam da escola e já está super escuro, é muito perigoso”, reclama Cristiana Soares, presidente da associação do quilombo. “Tem poste balançando e com risco de incendiar a vegetação.”

A caixa d'água que chegou há cinco anos ainda não atende a comunidade, porque não havia padrão de luz instalado para bombear a água do poço – e nos primeiros testes o sistema se encheu de areia, levantando dúvidas se o mecanismo foi instalado corretamente ou se é preciso haver nova perfuração. “A água é muito pouquinha, dizem que precisaria furar de novo”, denuncia Cristiana. 

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Comunidade preserva tradições e saberes seculares transmitidas pelas gerações (Crédito: Riva Moreira / TJMG)

Sem a horta e o galpão, boa parte das mulheres trabalha com faxina na cidade. O acesso à saúde é dificultado por falta de linha telefônica – o único vizinho que possui automóvel é quem socorre os quilombolas em momentos de emergência.

“Além da falta de regularização fundiária, há violações de direitos afetando nossas comunidades. Tentativas de modificar nossa cultura e nosso bem viver”, aponta Edna Gorutuba, presidente da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais. “Desde sempre nosso povo é desassistido. A partir de um projeto desses (do TJMG), acredito que as coisas comecem a andar". 

Entre as denúncias apresentadas pelos quilombolas está a utilização de drones, por parte de empresas que estariam interessadas nos terrenos, para pulverizar veneno nas plantações. E também para mapear seus territórios: no Moinho Velho, segundo os moradores, uma mineradora chegou a subir drones sobre suas casas, sem autorização.

Orgulho da ancestralidade

Em meio aos problemas estruturais, os quilombolas se orgulham das manifestações culturais e dos saberes tradicionais, como o Bumba Meu Boi, que celebra a luta pela liberdade e a fé, e a prática dos benzimentos. A benzedeira do quilombo é dona Geralda, como explica a filha, Lucilene Maria de Lima, de 36 anos: “Quase todo dia o pessoal está lá benzendo, ligam de outras cidades procurando ela. Ela benze na brasa: coloca o copo de água, pega a brasa no fogão a lenha, joga na água e faz a oração para benzer.”

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Grupo também esteve no Fórum Doutor Brito, na Comarca de Guanhães (Crédito: Riva Moreira / TJMG)

Margarida Faustina da Silva celebra a fé do povo: “A gente arrumava o andor e saía de casa, a comunidade vinha acompanhando. As donas com menino no colo, algumas com pedra na cabeça. A gente ia lá em cima, molhava o pé do cruzeiro, deixava a pedra. Podia confiar: com dois dias a gente voltava debaixo da chuva.”

A longevidade também é marca de resistência. Com a partida da mãe, Patrocina, que viveu 107 anos, e da tia, Cemi, falecida aos 101 no mês passado, Margarida se tornou a matriarca do quilombo. “Sou orgulhosa de ser a raiz do Morro Velho. É onde meu sangue correu, onde vivi as dores e alegrias.”

Veja outras fotos no Flickr oficial do TJMG.

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