"Enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. (...) o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos. (...) Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. (...) A vida não é entendível."
Com esses fragmentos de "Grande Sertão: Veredas", do escritor mineiro Guimarães Rosa, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia construiu parte do voto apresentado ao Plenário da Corte Suprema do país na emblemática decisão que, em 4 de maio de 2011, de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres.
A magistrada continuou: "É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito."

A decisão do Plenário do STF, relatada pelo ministro Ayres Brito, reconhecia a união homoafetiva como um núcleo familiar, consolidando um entendimento em torno da matéria e afastando a possibilidade de interpretações diversas. Com a medida, foram garantidos direitos diversos a esses casais, como pensão alimentícia, partilha de bens e herança.
Tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, a decisão descortinou um novo horizonte na garantia de direitos para a população LGBTQIA+. Na esteira dela, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução nº 175/2013, determinando que os cartórios realizassem casamentos de casais do mesmo sexo.
Novas realidades
Esse é apenas um entre tantos contextos nos quais o Judiciário brasileiro foi chamado a atuar, a fim de garantir os direitos da população LGBTQIA+. Nos últimos anos, um volume cada vez mais expressivo de ações desaguou nos tribunais de todo o país, com pedidos diversos.
"A resposta do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), face à luta desses grupos minoritários, tem caminhado no sentido de reconhecer novas realidades, permitindo que a sociedade evolua na garantia de direitos a todas as pessoas, preenchendo lacunas jurídicas, quando elas existem", observa o presidente, desembargador Luiz Carlos Corrêa Junior.
Assim, cerca de um ano antes da decisão do STF, o então juiz da 9ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, Haroldo André Toscano de Oliveira, reconhecia a união estável entre um administrador de empresas e um engenheiro. Na decisão, ancorada em diferentes artigos da Constituição Federal de 1988, o magistrado ressaltava não ser possível a discriminação em razão do sexo, já que todos são iguais perante a lei.
Em sua sentença, o magistrado pontuou que o Direito precisa ser dinâmico e evoluir para regular questões decorrentes da mudança da relação entre as pessoas que vivem na sociedade moderna. Ele destacou que o conceito de família mudou, e ressaltou o artigo 226 da Carta Magna brasileira que dispõe: "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado."
Vácuo normativo
Ainda em 2006, em respeito "às garantias fundamentais, constitucionalmente asseguradas, da igualdade, liberdade e não discriminação dos cidadãos", a então juíza da 1ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte, Áurea Brasil – hoje desembargadora do TJMG – concedeu a antecipação de tutela para que o Estado prestasse assistência de saúde à companheira de uma mulher.
As autoras, uma servidora pública e uma professora, viviam como cônjuges desde 1990, tendo construído uma vida em comum, cumprindo com obrigações de assistência mútua e em convívio estável. Por isso, sustentaram à Justiça ter direito de incluir uma delas como beneficiária da outra, em plano de saúde oferecido pelo órgão público.
O pedido das mulheres se baseou no texto constitucional, em especial os valores do Estado Democrático de Direito e os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. "O vácuo normativo não pode ser considerado obstáculo intransponível para o reconhecimento de uma relação jurídica (...) fato público e notório", destacaram as autoras da ação no pedido.
Princípio da igualdade
Hoje 2º vice-presidente do TJMG, o desembargador Saulo Versiani Penna, quando juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte, proferiu decisão, em 2008, determinando que o Instituto de Previdência do Estado de Minas Gerais (Ipsemg) pagasse pensão a uma enfermeira aposentada que mantinha uma relação homoafetiva com uma servidora pública estadual, também aposentada. As mulheres viviam em união estável desde 1981.
Na ocasião, o Ipsemg contestou o pedido, alegando, entre outros aspectos, que a Constituição Federal de 1988 havia ampliado o conceito de família de forma a abranger a união estável, mas não havia regularizado a união homoafetiva. Diante desse argumento, o magistrado pontuou que a mesma Carta Magna vedava qualquer forma de preconceito e discriminação, incluindo o desequilíbrio no tratamento jurídico, quando fundado na orientação sexual das pessoas.
No entendimento do magistrado, "o constituinte não almejou suprimir da apreciação jurídica a união homoafetiva, deixando o tema aberto à evolução dos costumes e do Direito". Disse ele: "A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da igualdade, censurando todas as formas de preconceito e discriminação. Essa posição é constatada desde o preâmbulo da Carta, que exprime o propósito de se constituir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". A orientação sexual, observou o magistrado, não perturba a ordem pátria e, assim, merece atenção e regulamentação jurídica.
Respeito à escolha
Em 2017, em respeito aos direitos de um adolescente de 12 anos transgênero, o juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro, então na Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, concedeu liminar autorizando que o jovem se submetesse a tratamento de interrupção da puberdade, com acompanhamentos médicos, psicológicos e psiquiátricos, independentemente da vontade paterna.
A decisão foi tomada em ação movida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). O adolescente apresentava o sexo genético masculino, mas se identificava com o gênero feminino. Na Justiça, com o apoio da mãe, ele pediu para seguir com o tratamento médico que retardava a definição sexual – caso a fase da puberdade prosseguisse, algumas características sexuais desenvolvidas seriam irreversíveis.
A interrupção da puberdade foi considerada, na decisão da Justiça mineira e no pedido do MPMG, medida necessária para garantir o direito do adolescente à escolha futura, já que, por lei, aos 16 anos, ele poderia suspender a medicação e então desenvolver características do sexo genético, masculino, ou então optar pela terapia hormonal de transição para o sexo feminino.
Na decisão, o juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro afirmou: "Não se pode conceber que o pai, de forma discriminatória, impeça ou prejudique os tratamentos e os acompanhamentos psicossociais indicados, com clara violação à dignidade humana e ao livre desenvolvimento da saúde mental do adolescente defendido pelo Ministério Público."
Proteção às minorias
Além de decisões judiciais, decisões administrativas e resoluções também surgiram para proteger a população LGBTQIA+. Em maio de 2024, na condição de corregedor-geral de Justiça, o presidente Corrêa Junior orientou cartórios acerca da cobrança do procedimento de alteração de nome e gênero de pessoa transgênero, em razão de inclusão do inciso IV, em 2023, ao artigo 21 da Lei nº 15.424/2004, que trata da matéria.
O art. 21 dispõe que "os declaradamente pobres estão isentos do pagamento de emolumentos e da Taxa de Fiscalização Judiciária". O inciso IV estabeleceu a gratuidade "pela averbação da alteração do prenome, do agnome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais."
Ante questionamentos acerca da matéria, o desembargador Corrêa Junior reconheceu, em decisão administrativa, que a inovação trazida pelo inciso IV visava proporcionar o exercício de direito ligado à cidadania e à personalidade pela autodeclaração de gênero aos transgêneros declaradamente pobres por ausência de condição financeira. Assim, julgou que a norma não se restringia à averbação, devendo, como nos demais casos previstos na legislação, abarcar procedimentos, arquivamentos e certidões.
Resoluções do CNJ
Destacam-se, ainda, diversos normativos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicados nos últimos anos. A Resolução nº 351/2020 instituiu, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfretamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e Discriminação, "a fim de promover o trabalho digno, saudável, seguro e sustentável no âmbito do Poder Judiciário". A norma foi alterada posteriormente pelas Resoluções nº 413/2021, nº 518/2023 e nº 538/2023.
Em 2020, foi publicada a Resolução nº 348/2020, que "estabelece diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente." O normativo sofreu alterações da Resolução nº 366/2021.
A Resolução nº 532, publicada em 2023, "determina aos tribunais e magistrados/as o dever de zelar pelo combate a qualquer forma de discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero, ficando vedadas, nos processos de habilitação de pretendentes e nos de adoção de crianças e adolescentes, guarda e tutela, manifestações contrárias aos pedidos pelo fundamento de se tratar de casal ou família monoparental, homoafetivo ou transgênero."
Já em 2024, a Resolução nº 582 instituiu o Fórum Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ e o "Formulário de Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente às Pessoas LGBTQIA+" ("Formulário Rogéria") no âmbito do Poder Judiciário.
Judiciário mineiro
A superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) e de Equidade de Gênero, Raça, Diversidade, Condições Físicas ou Similar do TJMG, desembargadora Evangelina Castilho Duarte, ressalta que, de fato, historicamente, o Judiciário tem desempenhado um papel fundamental na garantia dos direitos da população LGBTQIA+ e na proteção dessa população contra discriminação e violência.
"Essa atuação tem se dado, sobretudo, em duas esferas: na individual, com a resolução de casos específicos, e na coletiva, ao estabelecer precedentes e jurisprudências que orientam a aplicação da lei de forma mais ampla. Mas o Judiciário não se restringe a interpretar e a aplicar a lei; ele tem contribuído também para promover a igualdade e o respeito à diversidade", observa a desembargadora.
Na avaliação da juíza auxiliar da Presidência do TJMG Mariana Andrade, "embora os avanços na pauta da diversidade sexual tenham, em grande parte, se consolidado por meio de decisões judiciais e jurisprudência, o tema ainda é pouco discutido de forma aberta no Judiciário. Persistem tabus e preconceitos."
Para a magistrada, responsável por auxiliar as superintendências do Tribunal nos assuntos relacionados à equidade de gênero, raça, diversidade, condições físicas ou similar, essa é uma pauta que o Judiciário precisa incorporar de maneira efetiva, a partir das demandas reais da população LGBTQIA+. "É necessário ir além do mínimo, avançando na construção de uma justiça verdadeiramente inclusiva", conclui.
Evolução contínua
- STF: equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo a união homoafetiva como um núcleo familiar (2011);
- STF: garantiu que pessoas trans possam alterar nome e gênero no registro civil independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual (2018);
- STF: equiparou transfobia e homofobia ao crime de racismo (2019);
- STF: declarou inconstitucionais as normas que impediam homens que fazem sexo com homens de doar sangue, eliminando a exigência de abstinência sexual prévia (2020);
- STF: equiparou ofensas individuais contra pessoas LGBTQIAP+ ao crime de injúria racial (2023);
- STF: declarou que a norma estadual que proíbe linguagem neutra é inconstitucional (2023);
- STF: definiu a inaplicabilidade do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) em casos de homofobia (2024);
- STF: reconheceu que a mãe não gestante em união homoafetiva tem direito à licença-maternidade, equiparando-a à licença da gestante biológica (2024);
- STJ: autorizou a alteração de registro civil para inclusão de gênero não binário, reconhecendo o direito à autodeclaração de identidade de gênero além das categorias masculino e feminino (2025);
- STF: estendeu as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha a casais homoafetivos masculinos e a mulheres travestis e transexuais (2025).
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