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14/08/17 09:20

 

 

Pedro* era aluno do segundo ano do renomado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) quando trocou as salas de aula do centro universitário, que reúne a elite intelectual do País, pela prisão. Preso por porte de drogas, em determinado momento do cumprimento de sua pena ele foi enviado para a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de São José dos Campos/SP. Chegando ali, foi dada a ele uma incumbência: alfabetizar 35 recuperandos.

A experiência foi transformadora para o jovem, até que veio um momento esperado por todos que são privados de liberdade: uma audiência com um juiz, que deu a ele o benefício do sursis – a suspensão condicional da execução da pena. Mas o que aconteceu na sala, perante o magistrado, surpreendeu a todos os presentes. “Aceito a liberdade, mas não agora. Primeiro, quero libertar os demais recuperandos do analfabetismo”, disse o jovem. Assim, ele permaneceu na Apac, sob custódia do Estado, até finalizar sua missão.

Narrador dessa história, o advogado Mário Ottoboni coleciona relatos emocionantes que tiveram como cenário uma Apac, entidade que funciona com base em uma metodologia revolucionária que surgiu sob sua liderança. Nascido há 86 anos, Ottoboni sempre se questionava: “Há pessoas ajudando menores, outras dão assistência a idosos. Quem cuida dos presos?”. Disposto a trabalhar com aqueles que, aos seus olhos, revelavam-se como uma população das mais excluídas entre os excluídos, ele resolveu se debruçar sobre o sistema penitenciário brasileiro.

 

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Era década de 60. “Criei um grupo com 15 pessoas para vermos de perto a realidade nos presídios e estudar o tema.” A situação degradante vivenciada pelos presos o tocou profundamente, mudando sua trajetória para sempre. O cenário com que Ottoboni se deparou era de visível violação dos direitos humanos: superlotação de celas, péssimas condições de higiene, riscos de proliferação de doenças infecto-contagiosas.

Mário Ottoboni decidiu estudar psicologia. As reflexões dele sobre o sistema prisional e sobre as vivências dos presos foram se aprofundando, e assim foi gestada a inovadora experiência da Apac. “Foram doze anos de estudos até que surgisse a metodologia, que tem como base de tudo a valorização humana”, conta. Em 1972, em São José dos Campos, cidade onde Ottoboni vive, nasceu então a primeira Apac.

Humanizar o cumprimento das penas privativas de liberdade, em uma aposta na recuperação do ser humano que cometeu um crime, foi o objetivo central da criação da Apac. Doze elementos a sustentam, entre eles a participação da comunidade, o trabalho, a assistência jurídica, a valorização humana, a família. Em lugar de presídios com seus muros altos, cercas de arame farpado e presos ociosos abarrotando celas, entra em cena o Centro de Recuperação Social (CRS), espaço onde a metodologia apaquiana ganha vida.

 

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Nas Apacs, as pessoas privadas de liberdade são chamadas de recuperandos. Não há vigilância armada nem a presença de policiais – a lógica é que recuperandos cuidem de recuperandos. E, algo impensável nos presídios convencionais, os presos possuem a chave da própria cela. A disciplina é rígida, com horários determinados para acordar e se recolher, e todos devem trabalhar, estudar e participar de cursos de capacitação, que são continuamente oferecidos nos centros. Para permanecer ali, os recuperandos devem apresentar comportamento exemplar. Em vez de grandes complexos e pavilhões com milhares de presos, há espaços com capacidade para abrigar em média 200 pessoas.

Um ponto fundamental na metodologia é o envolvimento da família dos presos. É a oportunidade de reatar laços que são desfeitos pela prisão. No sistema prisional comum, o preso acaba sendo afastado da família, muitas vezes cumprindo pena longe de casa. Na Apac, encontros com os familiares são frequentes. Isso é muito importante para quebrar a barreira da solidão, do sentimento do condenado de que ele não vale nada e de que está só, além de ser um apoio principalmente quando ele retorna à sociedade”, declara Ottoboni.

 

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“Hoje, a metodologia já está presente em 23 países. No Brasil, são 48 Apacs: 1 no Rio Grande do Norte, 6 no Maranhão, 2 no Paraná e 39 em Minas Gerais, todas sob administração e fiscalização da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC)”, explica Valdeci Antônio Ferreira, diretor executivo da entidade. O número de Apacs em Minas, que supera em muito o de vários outros estados, tem uma explicação: a metodologia vem sendo disseminada para as comarcas mineiras pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), por meio do programa Novos Rumos, desde 2001.

O TJMG é destacado por Mário Ottoboni por ter sido o primeiro, entre os tribunais estaduais brasileiros, a criar um núcleo dedicado a disseminar a metodologia. “Esse empenho do Judiciário mineiro é fundamental, por isso já são tantas as Apacs hoje em Minas. Em todos os outros estados, os tribunais deveriam abraçar também essa causa. Vou além: estou convencido de que o sistema prisional deveria estar sob a responsabilidade de cada comarca. Elas deveriam assumir isso”, declara.

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Com uma trajetória marcada pela atuação em prol do aprimoramento do sistema penal e pela humanização no cumprimento das penas, o presidente do Tribunal mineiro, desembargador Herbert Carneiro, tem destacado a importância das Apacs e o desejo de que cada uma das 296 comarcas mineiras possuam uma dessas unidades. “A sensação de que o cumprimento da pena nas Apacs seja mais brando é puramente equivocada. Justamente ao contrário. O rigor e a disciplina costumam ser muito mais elevados do que no sistema comum, ainda que sejam permeadas sempre pelas diretrizes de humanização da pena, de observância a direitos e de resgate da cidadania”, declara o desembargador.

O programa Novos Rumos do TJMG tem recebido permanentemente a visita de delegações estrangeiras, que querem ver de perto a experiência das Apacs em Minas. Saem daqui inspirados e dispostos a implantar a metodologia em seus países. “Acredito que não exista nenhum outro modelo, no mundo, que crie tão boas condições e oportunidades para a recuperação como a Apac. Tenho visitado muitos projetos inovadores na área do tratamento penitenciário e posso dizer, com toda a liberdade, que a Apac é, de longe, o modelo mais evoluído, experimentado e inovador do mundo”, declara o português Duarte Fonseca.

 

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Integrante da delegação de Portugal que visitou o programa Novos Rumos do TJMG e algumas Apacs mineiras, em novembro do ano passado, Duarte Fonseca declara que visitar as Apacs de Minas, em especial as de Itaúna, São João del-Rei e Santa Luzia, foi uma experiência “fora do comum”. “Pude ver a disciplina com que a metodologia é aplicada e o envolvimento que existe de todos (voluntários, técnicos, recuperandos, juízes, Tribunal de Justiça, Instituto Minas pela Paz, Fundação AVSI, entre outros), em prol daquelas vidas que aos olhos de todos estariam perdidas”, declara.

A partir do que viu da aplicação do método em terras mineiras, Duarte Fonseca conclui que, quando reunidas as condições certas, a mudança é possível. “Isso me faz acreditar que o modelo de prisões do futuro já foi inventado e existe neste momento, no presente, em Minas Gerais”, declara o português, que está envolvido na tentativa de implementação da metodologia em um presídio de seu país.

Coordenador Executivo do programa Novos Rumos do Tribunal mineiro, o desembargador José Antônio Braga é um entusiasta das Apacs: “Sempre repetimos: ‘Hoje, contido; amanhã, contigo’. Os indivíduos que no momento se encontram encarcerados irão retornar à sociedade. Quando uma comunidade se conscientiza disso, ela se envolve e apoia iniciativas como essas, que, entre outros benefícios, alivia custos para o Estado”, ressalta.

 

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De fato, na ponta do lápis, os custos de um preso na Apac são menores para o Estado em cerca de 50%. As despesas de criação de uma vaga, nelas, também são menores em aproximadamente 27%. Mas o dado numérico que causa mais impacto é de outra natureza: média de 20% de reincidência, contra cerca de 75% no sistema prisional comum, no Brasil – no mundo, a média de reincidência é de 80%.

Além disso, lembra o presidente do TJMG, “ao assegurar o direito de estudo e de trabalho a todos os detidos, o que nem sempre é viável no sistema prisional comum, as Apacs permitem que o cumprimento da pena seja mais rápido, tendo em vista as remições recorrentes dessas atividades”. O reflexo disso, ressalta o presidente, é a redução “dos efeitos prejudiciais inerentes ao encarceramento”, o que contribui para a reintegração social do preso.

 

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Recomeçar a vida fora dos muros de uma prisão é um esforço imposto às pessoas privadas de liberdade que não se revela simples.  É preciso se readaptar a uma realidade da qual foram apartados, durante incontáveis dias: é preciso saber se desvincular de um passado com episódios de que não se orgulham, buscar novos meios de sobreviver, tentar reatar laços afetivos com familiares e amigos... É preciso, principalmente, acreditar na possibilidade de construir uma nova história.

Como fazer isso depois de ser submetido a situações degradantes, que empurram presos – às vezes encarcerados por delitos de pequeno potencial ofensivo – para as mãos de facções criminosas, em busca de proteção dentro dos presídios? João* sabe muito bem a coragem necessária para recomeçar a vida fora dos muros de uma prisão. Em 2007, aos 24 anos, ele foi preso em Portugal e sentenciado a 20 anos de prisão em regime fechado.

Do outro lado do Atlântico, João trabalhava em uma empresa de geotecnia e sonhava em se tornar jornalista, quando um passo em falso interrompeu todos os seus planos. Longe da família, cumpriu três anos de prisão naquele país e, enviado ao Brasil, continuou cumprindo a pena em um presídio comum. “Foram quase seis anos em regime fechado”, conta. Entrou numa cela aos 24 anos; saiu de outra aos 30.

 

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"Na Penitenciária Nelson Hungria, não quis que meu filho me visitasse. Meu pai vinha a cada 15 dias, pois aquela situação era muito difícil para ele. E minha mãe ficou tão abalada das poucas vezes em que foi até lá, submetida às revistas, que combinamos de ela não me ver mais”, conta. Foram tempos difíceis, até que, no meio do caminho, surgiu uma Apac. “As minhas perspectivas de recomeço, no sistema prisional comum, eram pequenas. Eu era apenas um número; acordava, recebia refeição e mais nada, além do banho de sol duas vezes por semana, por duas horas”, lembra.

Foi na Apac de Santa Luzia, para onde foi encaminhado, que ele conseguiu enxergar uma luz no fim do túnel. “Ali pude receber visita dos familiares, pois o clima era outro, e tive acesso a livros, retomando os estudos. Pouco depois, comecei a trabalhar como professor, alfabetizando outros recuperandos”, conta. O desejo de reerguer-se e de trilhar um caminho digno era forte e foi o vetor da mudança.

 

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Tendo abraçado as oportunidades que o sistema lhe ofereceu, João recebeu a liberdade condicional e começou a cursar pedagogia, tornando-se supervisor do curso de alfabetização da Apac de Santa Luzia. Naquele momento, declarou: “Isso é algo que tem me fascinado, é uma realização pessoal. Estou disposto a recuperar o tempo e ajudar outras pessoas, pois acreditaram em mim, me deram outra chance, então sei como isso pode mudar a vida de alguém”.

São trajetórias como a de João que fazem com que o idealizador da Apac, Mário Ottoboni, se orgulhe do modelo que construiu e renove sua fé no ser humano. Ottoboni não sabe explicar de quem herdou o legado humanitário, a compaixão pelos condenados e a crença na recuperação de quem se enveredou pelo caminho do crime. “O que sei, apenas, é que Deus, ainda em primórdios da nossa vida, prepara-nos para servir aos mais necessitados. É uma pena que a gente demore tanto a descobrir isso”, afirma o advogado, que há 50 anos abraçou a causa dos privados de liberdade. “Sou feliz: esse trabalho deu todo um novo e grande sentido à minha vida.”

 

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