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07/08/20 11:40

Mãos a obra pela liberdade
 
 

O sábado começou com a promessa de um dia feliz, naquele 9 de outubro de 2004. A estudante Lidiane Chagas acordou, tomou o café da manhã e saiu com o pai e a mãe, para ir a um salão de beleza. No caminho, viu o ex-namorado, de cabeça baixa, sentado no banco de uma praça, a poucos quarteirões da casa dela. Achou estranha aquela cena: ela morava em Contagem e ele em Betim. O que faria ali?

Passou a manhã arrumando os cabelos e, no final do dia, ela e a mãe decidiram aproveitar a noite de sábado para jantar fora. Os acontecimentos que se seguiram, a partir daquele momento, partiram a vida dela ao meio. Ambas chegavam em casa quando avistaram o ex-namorado. Ele não disse nada. Apenas se aproximou, mirou Lidiane e apertou o gatilho de um revólver.

A estudante se lembra de ver a mãe pulando na frente dela, para tentar protegê-la, mas os dois projéteis disparados pelo jovem, com quem ela namorara por um ano e meio e que não se conformava com o término do relacionamento, atingiram-na: um na perna e outro na nuca. Gritos, sirene de ambulância e momentos de desespero se seguiram. Pouco mais de cinco meses depois, ela retornou para casa, tetraplégica. Tinha 17 anos de idade.

Infográfico demonstrativo das informações acima.
 
 

Foi assim que Lidiane entrou para as estatísticas de violência contra a mulher, alimentando números que, nem de longe, revelam o drama por trás de cada agressão que figura ali. Uma vida foi interrompida, deixando sequelas físicas e psicológicas inimagináveis, que atingiram em cheio o coração daquela família. “Nem tive tempo de sentir medo dele depois do que aconteceu; eu estava tentando sobreviver. Havia outras urgências naquele momento”, conta Lidiane.

Com o passar dos anos, a jovem conseguiu mobilizar forças internas e, com a ajuda da família e de amigos, depois de um longo percurso, voltou a ter olhos para o futuro. Retomou os estudos, concluiu o ensino médio e, em 2019, iniciou o curso superior em Direito. Hoje, aos 33 anos, no quarto período, ela é um exemplo de superação e dá palestras contando sua história, para alertar as pessoas para o problema da violência contra a mulher.

Enfrentar esse flagelo, no Brasil, é um desafio que tem empenhado esforços do poder público e da sociedade civil organizada, mas que esbarra nas raízes de uma sociedade patriarcal. Em 2019, 1.314 brasileiras foram mortas em decorrência de violência doméstica ou por sua condição de gênero: a média é de uma mulher a cada sete horas, segundo o Monitor da Violência, parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em Minas, foram 136.

São tragédias anunciadas, engendradas pelo chamado ciclo de violência doméstica, uma espiral ascendente que, muitas vezes, começa com violência moral, psicológica e patrimonial, não raramente envolve a violência sexual, resvala para a agressão física e atinge seu ápice com o feminicídio. Dramas que deságuam no sistema de Justiça, para onde as mulheres rumam em busca de medidas protetivas e punição aos agressores.

Infográfico demonstrativo das informações acima.
   
Momento da virada
 
 

O surgimento da Lei 11.340 , conhecida como Maria da Penha, há exatos 14 anos, em 7 de agosto de 2006, representou um divisor de águas no cenário da violência contra a mulher. “Até então, as agressões eram ainda mais subnotificadas e não havia uma política voltada para a igualdade de gênero”, observa o juiz do 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belo Horizonte, Marcelo Gonçalves de Paula.

Reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das legislações mais avançadas do mundo no tema, a Lei Maria da Penha também é exaltada por seus desdobramentos. A partir dela, foram criados os juizados especializados, disseminadas as delegacias de mulheres e promovida uma maior articulação entre Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário, com o objetivo de criar um sistema de Justiça mais humanizado e comprometido com o atendimento e a proteção às vítimas.

“A lei é um marco legal, educacional, humanístico e de ações afirmativas”, classifica o juiz. No rastro da legislação, destaca ele, surgiu ainda a Lei do Feminicídio, em 2015, que introduziu uma qualificadora nos homicídios praticados contra mulheres, por questões de gênero. Ele ressalta também os dispositivos legais que, entre outros pontos, estabeleceram procedimentos para não submeter a mulher à “revitimização”, como o de evitar questionamentos sobre a vida privada durante os depoimentos.

“Outra alteração importante veio em 2018, quando o descumprimento de medidas protetivas de urgência passou a ser um crime”, conta o magistrado, acrescentando também as articulações que culminaram, em 2019, com a previsão de que a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher possa abranger as ações de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável.

Entre as medidas surgidas em 2020, o juiz Marcelo de Paula destaca aquelas que visam ao enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher durante a pandemia de covid-19, como a não suspensão de prazos processuais, de apreciação de matérias, de atendimento às partes e de concessão de medidas protetivas.

Maria da Penha: a mulher
 
 

“Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei mexer-me, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: ‘Meu Deus, o Marco me matou com um tiro’. Um gosto estranho de metal se fez sentir, forte, na minha boca, enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou mais assustada. Isso me fez permanecer com os olhos fechados, fingindo-me de morta, pois temia que Marco me desse um segundo tiro.”

O trecho acima integra a biografia “Sobrevivi... Posso Contar”, da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, e narra os momentos vivenciados por ela na madrugada de 29 de maio de 1983, quando, aos 38 anos de idade, ela sofreu a primeira tentativa de feminicídio por parte do seu então marido, com quem tinha três filhas e estava casada havia cerca de sete anos.

Infográfico demonstrativo das informações acima.
 
 

Quando ainda se recuperava da agressão, fragilizada física e emocionalmente, depois de receber um diagnóstico de que nunca mais poderia andar, devido às lesões provocadas pelo tiro, Maria da Penha sofreu uma segunda tentativa de feminicídio, quando o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Farmacêutica bioquímica, formada pela Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade Federal do Ceará e mestre em Parasitologia e Análises Clínicas pela Universidade de São Paulo (USP), Maria da Penha já vivia uma vida de abusos ao lado do agressor, sendo vítima de todo tipo de violência e vivenciando uma rotina de medo.

A incansável luta de Maria da Penha, ao longo de quase 20 anos, para que o ex-marido fosse condenado pelo crime, fez dela um símbolo no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Sua história impulsionou as discussões que deram origem à Lei 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, e que ficou nacionalmente conhecida pelo nome dela.

Desde então, a farmacêutica percorre o País divulgando a legislação e compartilhando sua história de vida por meio de palestras, seminários e entrevistas. Em 2009, fundou o Instituto Maria da Penha, organização não governamental sem fins lucrativos por meio da qual promove ações diversas na luta à violência doméstica e familiar contra a mulher.

Cultura enraizada
 
 

Superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) do TJMG, a desembargadora Ana Paula Nannetti Caixeta ressalta que o Brasil é signatário de convenção que assegura a toda mulher o direito de ser livre de violência. A magistrada acrescenta que todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos também protegem as mulheres e que o Estado brasileiro contempla, em seu ordenamento jurídico, dispositivos para assegurar direitos a elas e para combater e reprimir as mais diversas situações de violência contra esse grupo.

O número alarmante de denúncias desse tipo de agressão, contudo, revela os meandros profundos desse fenômeno. Um exemplo de sua complexidade está na miríade de fatores de risco que convergem para esse tipo de violência, enumerados pela superintendente da Comsiv: baixo nível de educação, histórico de exposição a maus-tratos infantis, experiência de violência familiar, existência de normas sociais que privilegiam os homens ou lhes atribuem status superior e acesso reduzido das mulheres ao emprego remunerado, entre outros.

“Diante dos multifacetados problemas que podem acarretar violência contra a mulher, é necessária a implantação de políticas públicas verdadeiramente adequadas para o combate efetivo e a prevenção, a punição e a erradicação dessas situações. A família, a sociedade e o poder público, de forma articulada e organizada, devem criar as condições necessárias para o pleno exercício dos direitos assegurados às mulheres”, analisa.

 
 

De acordo com a desembargadora, a Lei Maria da Penha estipula o dever do Estado de promover e executar essas políticas públicas, ressaltando que elas deverão ser criadas por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de ações não governamentais.

“É imprescindível a atuação coordenada da sociedade e das instituições públicas, para o tratamento específico desse grave problema, pois ele tem natureza socialmente irradiada. Ações isoladas ou desarticuladas não se mostram suficientes para a erradicação da violência contra a mulher, tendo em vista se tratar de um problema irradiado em nossa sociedade atual, com múltiplos fatores, causas e agentes”, reitera.

 

Ação conjunta
 
 
foto: desembargadora Ana Paula Nannetti Caixeta
 
 

Na avaliação da superintendente da Comsiv, o engajamento deve ser coletivo e amplo. “Não é adequado e nem eficaz que apenas o Judiciário realize o julgamento tempestivo dos processos dessa natureza submetidos à sua jurisdição, ou que o Legislativo elabore diplomas normativos atinentes à temática ou que o Executivo desenvolva medidas meramente paliativas para contornar a situação problemática, ou, ainda, que a sociedade civil apenas se sensibilize com as situações cotidianas de violência”, avalia.

Para a magistrada, por ter “contornos irradiados”, essa violência só pode ser solucionada a partir de uma perspectiva estrutural. “Tal solução deve ocorrer perante as instituições públicas, por meio do debate qualificado, plural e democrático, com a construção de políticas públicas adequadas”, diz. Caso a omissão do poder público permaneça, a via jurisdicional revela-se uma possibilidade, através do ajuizamento de processo de natureza estrutural. Nesse caso, o Poder Judiciário é demandado a proferir decisão “que possa resolver, em perspectiva macro, todas as facetas desse problema socialmente irradiado”.

Processo estrutural
 
 

Ao abordar a questão, a desembargadora recorre ao conceito de litígios estruturais, proposto pelo professor e doutor em Direito Edilson Vitorelli, que ela avalia como uma contribuição relevante para o debate. Para o professor, litígios estruturais são “litígios coletivos irradiados decorrentes do modo como uma estrutura burocrática, usualmente pública, mas, excepcionalmente, privada, opera”.

Na visão do jurista, o funcionamento dessa estrutura é a causa do litígio, e mudar esses mecanismos do sistema é necessário para a solução dos conflitos. “Tratar apenas os efeitos do litígio pode trazer resultados aparentes e de curto prazo, mas que não serão duradouros nem significativos. Pelo contrário, é possível que soluções não estruturais agravem o litígio, no longo prazo”, acredita o professor.

Assim, além de políticas públicas adequadas e da atuação coordenada entre a sociedade civil e as demais instituições públicas, no enfrentamento dessa violência, a desembargadora destaca ser possível que o Poder Judiciário atue por intermédio do processo estrutural, caso venha a ser acionado, e possa, por meio do processo jurisdicional, determinar soluções de caráter programático, efetivas no combate à violência contra a mulher.”

Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAO-VD) do Ministério Público de Minas Gerais, a promotora de justiça Patrícia Habkouk também ressalta que a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher é estrutural. Sobre as origens do problema, ela é categórica: “Ele tem como causa o machismo”.

“Trata-se de uma realidade desafiante que, com a pandemia, ficou mais evidenciada, mostrando algo que nós, especialistas no tema, já sabíamos: a violência doméstica é uma questão social grave no Brasil e no mundo. Desde 2013, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem afirmando que esse é um problema de saúde de proporções pandêmicas. A gente vive duas pandemias neste momento: a de covid-19 e a de violência doméstica contra a mulher”, declara.

Em meio à crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, a promotora de justiça celebra a regulamentação de lei que permite o registro desses atos de violência contra a mulher pela internet. O boletim de ocorrência online é uma ferramenta que a vítima, de casa, e silenciosamente, pode acessar. Por meio dele, ela pode também pedir medidas protetivas. “As medidas protetivas salvam vidas. Embora a imprensa destaque as mortes, a grande maioria das mulheres que pedem proteção sobrevive”, pontua.

Decádas de humilhação
 
 

Antônia Teixeira Fonseca dos Santos, de 50 anos, é uma das brasileiras salvas por medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Mãe de quatro filhos, a professora passou a metade da vida ao lado de um agressor. Foram duas décadas e meia de humilhações, agressões de toda natureza e muito medo. “Eu não podia falar nada, nem sequer rir de algo com os meus filhos, e ele já ficava superagressivo”, lembra.

Foram 32 boletins de ocorrência contra o ex-companheiro. “Numa noite, cheguei a dormir na delegacia com meus filhos, com medo de voltar para casa. Todo final de semana, eu ia parar no hospital, com pressão alta. Um dia, uma médica disse que me daria 30 minutos para eu explicar a ela o que estava me levando até lá toda semana. Ao me ouvir, ela disse: ‘Separe, pois ele vai te matar’. E me perguntou se eu queria morrer e deixar meus filhos no mundo para serem criados por outra pessoa.”

Numa noite, dormi com meus filhos na delegacia, com medo de voltar para casa¿
 
 

Ao falar das crianças, a médica conseguiu sensibilizar Antônia para a espiral de violência na qual ela estava inserida. O divórcio tornou-se então uma meta, mas isso amplificou a violência que sofria. “Um dia, cheguei em casa com minha filha mais nova e ele havia cortado os fios de luz e os canos de água. Dei marcha a ré no carro e fui para a delegacia. Cheguei ali tão desesperada e exausta com tudo aquilo que apenas entreguei minha identidade, pois minha voz mal saía; tudo o que consegui dizer foi: ‘me socorre’.”

Sem informações sobre seus direitos e sem ter para onde ir com os filhos, ela ainda viveu sob o mesmo teto com o agressor durante alguns anos, até descobrir que já contava com uma medida protetiva contra ele e que tinha o direito de permanecer na casa com os filhos. Ele se foi, mas continuou perseguindo-a: chegou a correr atrás dela com canivete na rua, jogou o carro em cima dela certa vez e estava sempre na porta da escola onde ela dava aulas.

“Quando ele estava usando tornozeleira eletrônica, eu passei alguns dos momentos mais angustiantes da minha vida. Não conseguia dormir, porque ele ia para a porta da minha casa para que o aparelho começasse a apitar, provocando em mim um estágio de tensão constante, pois eu sabia que ele estava por perto e poderia fazer algo contra mim. Foram 19 descumprimentos da medida protetiva”, recorda-se.

Decádas de humilhação
 
 

Foi em uma audiência de fortalecimento, iniciativa idealizada pelo juiz Marcelo de Paula, que Antônia pôde, pela primeira vez na vida, ter voz. “O juiz perguntou se eu gostaria de ficar frente a frente com ele, e eu quis. Ele entrou na sala já querendo falar alto, mas o juiz disse que ele só iria escutar. Debulhando-me em lágrimas, falei por mais de 40 minutos, tudo o que ele nunca me deixou falar. Parecia que algo estava sendo arrancado do meu peito. Ele precisou ouvir até o fim”, conta.

O relacionamento abusivo deixou marcas indeléveis na saúde e na alma da professora, mas ela afirma que aquela audiência foi transformadora e redentora. “Passei até a respirar melhor”, declara. Hoje, ela está reconstruindo a vida e conquistou, enfim, paz. Começou a cursar Direito — curso interrompido no quinto período, mas que ela pretende retomar, quando as condições financeiras forem mais favoráveis — e decidiu que iria sempre mostrar seu rosto e revelar sua história.

Além de ter criado um grupo no Facebook sobre o tema, por meio do qual oferece orientação jurídica e apoio a brasileiras de diferentes estados do País, vítimas do mesmo tipo de violência que ela sofreu, Antônia chegou a estagiar na Defensoria Pública de Minas Gerais, atuando exatamente com mulheres enredadas no drama que ela superou. “As feridas do que vivi vão demorar a cicatrizar. Mas, a cada vez que ajudo uma mulher, esse processo se acelera, e isso é hoje, para mim, uma missão.”

Podcast - Como identificar o abuso
 
 

Ouça áudio da juíza Maria Aparecida Consentino Agostini, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belo Horizonte, sobre como identificar um relacionamento abusivo.

Podcast ¿ Como identificar o abuso
 
 

E veja vídeo no qual a psiquiatra Tatiana Mourão, professora doutora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fala sobre como as vítimas podem superar a violência que sofreram.

 

 
Virando a chave
 

Iniciativas como a audiência de fortalecimento pela qual Antônia passou são avanços que vêm sendo travados nessa batalha. É na ponta, onde atuam os juízes, que lidam no dia a dia diretamente com as vítimas, que as ações do Judiciário em prol dessas mulheres são postas em prática e produzem seus potentes efeitos. Para além da atividade fim de julgar, o esforço tem sido o de oferecer às vítimas proteção, acolhimento e espaços de escuta, além de encaminhá-las para a rede pública de atendimento.

Nesse sentido, a juíza Roberta Chaves Soares, do 4º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Belo Horizonte, destaca a importância dos chamados grupos reflexivos, que reúnem agressores em sessões mensais, para as quais são enviados por determinação dos juízos. Ali, eles são incitados a refletir sobre o machismo e sobre padrões de comportamento. “Na minha experiência como juíza, observo que aqueles que participaram desses encontros não voltam a reincidir”, diz.

Até março de 2020, a participação dos réus nessa iniciativa não era obrigatória, caso eles fossem indicados, pela Justiça, a integrar um desses grupos. Isso mudou, e a magistrada exalta o valor da novidade. “Tenho observado que a pena privativa de liberdade, a aplicação da lei penal, pura e simplesmente, não resolve o problema. É preciso ir além e oferecer uma assistência mais ampla, tanto para a vítima quanto para o agressor”, declara.

Muitos homens repetem um padrão que vivenciaram dentro de casa, tendo crescido assistindo à violência perpetrada pelos pais contra suas mães. “Por isso, a proposta do grupo reflexivo é trabalhar a responsabilidade do agressor frente à violência, permitindo que ele também rompa um ciclo de violência. É algo para a vida dele, como ser humano”, acrescenta.

Acolhimento e informação

A juíza Roberta Soares também defende a criação de grupos de encorajamento, reunindo as mulheres, para que elas possam trocar experiências e se fortalecer, a fim de não se tornarem mais uma vez vítimas em outros relacionamentos. “Além do acompanhamento psicológico, o apoio para que se insiram no mercado de trabalho, por exemplo, também é fundamental”, acrescenta.

Um grupo composto por cinco psicólogas e duas assistentes sociais, todas voluntárias, tem feito a diferença para muitas dessas vítimas, no Fórum Lafayette, na capital mineira, de acordo com a magistrada. Os atendimentos individuais vêm acontecendo, sobretudo, depois de as mulheres passarem pelas audiências, momentos que são marcados por muita angústia e tensão.

“As salas de audiência se apresentam como um cenário pouco conhecido e pouco favorável para uma pessoa que está sob forte impacto emocional, muitas vezes acumulado por anos de sofrimento pelo abuso sofrido”, observa a psicóloga voluntária Rosália Orico. Entre outros aspectos, as vítimas relatam o medo de rever o agressor e de não saber expressar ao juiz o que se passou com elas, expressando também dúvidas sobre se poderiam encerrar o ciclo de sofrimento a partir dali.

“Durante o atendimento, procuramos desmistificar a Justiça para essas mulheres, que, na maioria dos casos, não têm experiência com as rotinas e com os termos jurídicos utilizados pelos profissionais da área. Buscamos também oferecer orientações para o enfrentamento da situação diante delas mesmas e de suas famílias, principalmente dos filhos”, explica.

De acordo com Rosália, a ideia é aperfeiçoar essa iniciativa, com a atuação dos profissionais voluntários para um atendimento psicológico de vítimas também antes do dia da audiência. “A articulação entre profissionais do Direito e da Psicologia nas antessalas das audiências pode diminuir o sofrimento das vítimas durante o trânsito dos processos e facilitar o encaminhamento delas para acompanhamentos terapêuticos”, avalia a psicóloga.

Outra iniciativa de destaque no fórum de Belo Horizonte foi a criação de uma sala de acolhimento destinada a essas mulheres e localizada no mesmo andar em que acontecem as audiências. Com sofás, espaço lúdico para crianças, mesas de café, biblioteca, banheiro privativo, entre outras amenidades, a sala poderá ser usada, futuramente, para abrigar oficinas e outras atividades, de acordo com os planos da juíza Roberta Soares.

 
 

Conheça a história de superação da juíza titular da 6ª Vara Criminal de Belo Horizonte, Luziene Medeiros do Nascimento Barbosa Lima:

Virando a chave
 
 
   
  • A VOLTA POR CIMA
    Anos 70. Depois de cinco anos de namoro, Luziene Medeiros do Nascimento Barbosa Lima subia ao altar para se casar com um jovem, nas palavras dela, “lindo, inteligente, extremamente capacitado e amoroso”, que ela tinha conhecido aos 16 anos de idade. Os noivos eram universitários, tinham a mesma idade e estavam apaixonados.

    “No início do casamento, nosso relacionamento era muito bom, mas, depois, ele começou a apresentar um comportamento estranho e a me tratar de forma humilhante”, lembra. Por pequenas coisas, o marido tinha ataques de fúria. A falta de feijão em uma refeição era o suficiente para ele jogar no rosto dela o prato de comida.

    De acordo com Luziene, as agressões verbais e as humilhações tornaram-se rotina, e foram minando a autoestima dela. Deprimida e cheia de medo, ela se sentia incapaz de sobreviver sem aquele marido agressor. “Você é uma porcaria de mulher. Além de burra e incompetente, com dois filhos nas costas, quem vai te querer?”, dizia ele.

    Além da insegurança quanto à própria capacidade de sustentar a si mesma e aos filhos sem a ajuda daquele provedor, ela conta que, na época, uma mulher que ousasse ir a uma delegacia denunciar uma agressão do marido ou que se desquitasse era estigmatizada. Presa àquela situação, ela suportou por 12 anos o casamento abusivo.

    “O medo que me invadia era tão grande que o levantar pela manhã havia se tornado um peso enorme para suportar”, conta. Em um dos episódios de agressão, por pouco ele não a matou, ao desferir nela um soco que a fez desmaiar e quase perder a visão do olho esquerdo. Mas foi um episódio de agressão verbal que a impulsionou definitivamente rumo à separação.

    “Foi por amor a meus filhos, inicialmente, que tomei a mais difícil decisão da minha vida: me separar do meu agressor. Para não ter brigas judiciais, abri mão de minha parte por direito nos bens, pois finalmente compreendi que preservar minha sanidade seria mais importante do que continuar naquele estado”, declara.

    Depois da separação, foram longos anos de dificuldades de toda sorte, nos quais ela precisou lutar pelo sustento dela e dos filhos. Formada em Direito — cursou os cinco anos da graduação estudando com livros de biblioteca, pois o marido agressor não a apoiava —, ela encontrou no trabalho incansável um espaço de resgate da autoestima.

    Com os anos, vieram as conquistas. Encontrou um novo amor, com quem se casou e teve o terceiro filho. Desse companheiro, recebeu todo o incentivo necessário para ir atrás dos seus sonhos. Em 1993, tornou-se juíza de direito, contrariando todos os prognósticos de fracasso que o ex-marido agressor havia traçado para ela.

    Foram sete anos felizes ao lado do segundo marido, que faleceu precocemente, de infarto, exigindo de Luziene um segundo esforço de superação, diante da dolorosa perda. Passaram-se mais anos, e ela conseguiu novamente reconstruir a vida amorosa, estando hoje casada pela terceira vez.

    Além de uma fé inabalável em Deus, Luziene, hoje titular da 6ª Vara Criminal de Belo Horizonte, afirma que a determinação foi fundamental em sua trajetória, ao lado do apoio emocional que recebeu dos pais. “Parti do ponto zero, morrendo de medo e insegura, mas acreditando que fazemos a nossa própria história”, diz. E, para ela, a superação era o único caminho possível.

     

     

     

 

 

Podcast - Ciclo da violência
 

Ouça áudio da defensora pública Samantha Vilarinho Mello Alves sobre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher:

Superação
 

Quando começou a se relacionar com o ex-companheiro, um carismático policial militar, a representante comercial Fabiana Menegati não imaginava o caos que ele traria para sua vida. Com o tempo, o parceiro se revelou um homem extremamente possessivo e controlador: chegou a clonar as redes sociais dela e, por meio de uma ferramenta na internet, passou a monitorar os passos da namorada, em tempo real.

Além disso, o policial passou a fazer uso abusivo de álcool, e a personalidade agressiva veio à tona. Após uma tentativa dele de a agredir fisicamente, Fabiana conseguiu na Justiça uma medida protetiva. Mas os dias se passaram e o companheiro se mostrou arrependido. Começou a mandar recados insistentes para ela, com promessas de mudança e pedidos de reconciliação. Chegou a dizer que estava em depressão e que seria capaz de tirar a própria vida.

Frase de fabiana: ele ia de madrugada para a porta da minha casa, chutava o portão, xingava.
 
 

Os dois reataram e, por pouco mais de um mês, viveram a fase do ciclo de violência doméstica conhecida como lua de mel. “De repente, ele se descontrolou de novo, e então resolvi me separar, definitivamente. Foi quando o tormento aumentou. Ele ia de madrugada para a porta da minha casa, chutava o portão, xingava, chegou a colocar cola de sapateiro na fechadura, em um dia em que eu não estava, para me impedir de entrar”, conta.

As ameaças se tornaram mais agressivas diante da irredutibilidade dela de reatar o relacionamento. “Então, você se prepare. Não tenho medo de juiz, de desembargador, de promotor. Sou policial, nada vai me acontecer”, dizia, em tom ameaçador, acrescentando que a mataria e se suicidaria em seguida. Uma noite, ele conseguiu pular o portão da casa dela, embriagado, de posse de uma faca, e parecia querer cumprir o macabro plano traçado. Mas a polícia chegou a tempo de evitar uma tragédia.

Hoje com 42 anos, Fabiana, uma das mulheres atendidas pela psicóloga voluntária Rosália, no Fórum Lafayette, afirma que o atendimento psicológico que recebeu ali foi fundamental para ela, naquele momento. Ela conseguiu se desvencilhar daquele ciclo de violência, lutou para que o agressor fosse punido e conseguiu iniciar uma nova história de vida.

De vítimas a defensoras
 
 

Fabiana, ao lado de Lidiane, Antônia e Luziene, e milhares de outras mulheres, no Brasil e no mundo, revelam com suas trajetórias inspiradoras a potência que uma mulher é capaz de resgatar e mobilizar, mesmo após passar pelo drama de sofrer com a violência perpetrada por seus próprios companheiros, dentro do espaço sagrado onde sonharam construir um lar.

Além da força admirável e do passado com episódios de abusos, elas têm algo mais em comum, em suas biografias. Luziene tornou-se juíza, e as demais personagens desta reportagem também esperam, um dia, encontrar no campo do Direito um espaço de autorrealização profissional. Elas já foram vítimas, mas hoje são protagonistas de seus destinos e têm fome de justiça.

Confira vídeo no qual Samya Abreu, de 9 anos de idade, recita “A Lei Maria da Penha, em Cordel”, do artista popular Tião Simpatia. A pequena cearense fez a gravação com exclusividade para o TJMG, para marcar os 14 anos da Lei 11.340/2006, celebrados neste mês de agosto.

 

 

 

 

Coordenação plural: Marlyana Tavares, reportagem: Daniele Hostalácio, webdesign: Thiago Rique,  edição de Web: Danilo Pereira, revisão de texto: Patricia Limongi, ilustração: Cristina Baía Marinho, edição de imagem e de audio: Jéssica Hissa, fotografia: Cid Moreira. Produzido pela Assessoria de Comunicação Institucional, Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

 

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