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01/02/19 16:22

 

 

“Prezados juízes, autoridades políticas e religiosas, o que a dignidade significa para os senhores? Sejam quais forem as respostas de suas consciências, saibam que para mim isso não é viver dignamente, eu queria ao menos ter podido morrer dignamente. Hoje, cansado da inércia das instituições, me vejo obrigado a fazer isso às escondidas como um criminoso. Comunico aos senhores que o processo que me conduzirá à morte foi escrupulosamente dividido em pequenas ações que não constituem crimes em si mesmas, levadas a cabo por diferentes mãos amigas. Se ainda assim o Estado insistir em punir meus colaboradores, eu sugiro que lhes cortem as mãos, pois essa foi toda a sua contribuição. A cabeça, quero dizer a consciência, foi minha. Como podem ver, ao meu lado tem um copo de água contendo uma dose de cianureto de potássio. Quando eu a beber, deixarei de existir, renunciando ao meu bem mais precioso, meu corpo. Considero que viver é um direito e não uma obrigação, como tem sido o meu caso, obrigado a suportar esta terrível situação durante 28 anos, quatro meses e alguns dias. Nesse tempo, avalio o caminho percorrido, ele não foi lá muito feliz. Só o tempo que correu contra a minha vontade durante quase toda a minha vida, a partir de agora, será meu aliado. Só o tempo e a evolução das consciências decidirão algum dia se a minha petição era razoável ou não”.

 

 

O texto acima faz parte da última cena do premiado filme Mar Adentro, que relata a vida de Ramón Sampedro (interpretado por Javier Bardem), um marinheiro e escritor espanhol que ficou tetraplégico após um acidente de mergulho, aos 25 anos. Depois de mais de duas décadas preso a uma cama, ele resolve reivindicar judicialmente o seu direito de morrer, por meio da eutanásia. A batalha judicial durou cinco anos e Ramón teve seu direito negado; decidiu, então, cometer suicídio com a ajuda de alguns amigos. Cada um deles encarregou-se de um dos passos necessários para que ele pudesse colocar fim à própria vida. A co-produção espanhola, francesa e italiana de 2004 foi dirigida por Alejandro Amenábar.

A discussão sobre o direito à morte é delicada e polêmica, envolvendo questões médicas, jurídicas, culturais e religiosas. Países europeus como Bélgica, Finlândia, Holanda, Luxemburgo, Inglaterra, Suíça, bem como alguns estados norte-americanos e a Colômbia e o Uruguai, na América do Sul, têm legislações que regulam a morte assistida.

Ficou conhecido, no primeiro semestre de 2018, o caso do professor e cientista australiano David Goodall, de 104 anos, que viajou à Suíça para recorrer ao suicídio assistido. A legislação da eutanásia no estado de Victoria, na Austrália, entrará em vigor em junho de 2019 e contemplará apenas pacientes em fase terminal, com expectativa de vida de menos de seis meses. Como o cientista não estava nessa situação, mas considerava que sua qualidade de vida havia piorado muito nos últimos anos, ele programou sua morte em uma organização de assistência ao suicídio em Basileia, na Suíça.

As regras legais dos países citados são variadas, mas guardam em comum o processo rigoroso de análise – por uma equipe médica – da doença, geralmente terminal, e do desejo do paciente que pretende se submeter à morte assistida. Esta pode acontecer por meio da eutanásia ou do suicídio assistido.

 

“Quando a morte assistida não é requerida ou não é permitida no país em que se encontra o paciente, os profissionais de saúde cuidam do processo de morte dos pacientes em estágio terminal por meio da distanásia ou da ortotanásia, mais conhecida por cuidado paliativo. “Cuidado paliativo não é morte assistida. A interseção existe quando ambas as situações primam pela autonomia do sujeito”, afirma a médica coordenadora da pós-graduação em cuidados paliativos da Faculdade Unimed, Cristiana Guimarães Paes Savoi.

No Brasil, quando se tem acesso aos equipamentos de saúde, é comum se deparar com a prática da distanásia. A maioria dos pacientes terminais ou em estágio avançado de enfermidade é submetida a vários tipos de intervenções que prolongam seu processo de morte. Críticos da distanásia a denominam obstinação terapêutica, pelas condições degradantes a que são submetidos os pacientes. Segundo Cristiana Savoi, a maioria dos profissionais de saúde tem um olhar muito tecnicista – focado na doença, no órgão e na célula – e praticam uma medicina que perde um pouco da humanidade porque não considera as particularidades do paciente.

No que se refere aos cuidados com pacientes terminais, a médica avalia que muitas vezes o que se faz não é um prolongamento da vida, mas um prolongamento do sofrimento e do processo de morrer. “A pessoa está numa situação irreversível e aplicam-se terapias e medicamentos, meios artificiais que não irão mudar o quadro da doença. Isso não traz qualidade de vida, é a futilidade médica ou obstinação terapêutica. Condutas que não têm um objetivo razoável, pelo contrário, proporcionam muito sofrimento para pouco ou nenhum benefício, isso é distanásia”, afirma.

 

 

 

A morte é um fim certo para todos nós. Em algumas enfermidades, o desfecho é até previsível dentro de um período determinado. Ainda assim, cresce o entendimento de que há alternativas para lidar com essa realidade e promover o bem-estar do doente e do seu entorno dentro do possível. Para evitar a distanásia, as equipes de cuidados paliativos atuam com uma proposta de deixar a morte acontecer no seu tempo certo. Quem pratica cuidados paliativos, na visão da médica Cristiana, não quer acelerar a morte nem prolongar o processo de morrer. “Nós temos reverência pela autonomia e pela dignidade das pessoas. A pergunta é: Como viver até o dia de morrer? Nosso compromisso é com a vida, com o máximo de qualidade de vida, com o máximo de sentido”, diz a especialista em cuidados paliativos.

Nessa vertente, familiares de pacientes e profissionais de saúde que vivem ou viveram a experiência dos cuidados paliativos avaliam que é a prática mais recomendada para os doentes, para seus familiares e para as pessoas que os acompanham.

"A equipe de cuidados paliativos foi fundamental. O enfermeiro ia até nossa casa três vezes ao dia para ministrar os medicamentos, e os outros profissionais, uma vez por semana ou quando precisávamos. A equipe foi nota mil, impressionante", elogiou Guilherme dos Santos Amaral, que acompanhou o processo de morte de seu companheiro, vítima de um câncer de pâncreas, aos 48 anos.

"O cuidado paliativo permitiu que a gente tivesse conversas que de outra forma não teríamos, permitiu que a gente encarasse a morte, que despedíssemos um do outro. Falamos do privilégio de ter um ao outro para passar pelo processo de morte. Conhecemos a verdadeira paz, vivemos a maior dor que poderíamos viver, mas a postura foi a mais saudável. A gente também ria, se divertia, se curtia. É óbvio que teve sofrimento, mas ele só nos fazia crescer para deixar tudo mais leve. É claro que houve momentos de choro, mas nossa casa não tinha clima de velório, porque combinamos que iríamos viver", recordou Guilherme.

É desse apoio de que falou Guilherme que os pacientes terminais e seus familiares precisam. Cristiana Savoi lembra que há sempre muita angústia e dificuldade quando se fecha o diagnóstico de uma doença grave e incurável. Mais do que nunca, então, os cuidados paliativos são fundamentais. "É uma abordagem multiprofissional – médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, capelão – que visa aliviar o sofrimento de pessoas que têm doenças que ameaçam suas vidas porque não existe cura para elas. Queremos saber o que a pessoa quer para sua vida, quais são seus valores, quais são suas crenças, o que dá sentido à sua vida para então definir o tratamento de forma compartilhada. Não é uma decisão do médico. O enfoque é bio, psico, social e espiritual. Trabalhamos em regime domiciliar ou hospitalar, com controle eficaz de sintoma, comunicação com o paciente e com a família, que é parte do nosso cuidado", afirma.

Como disse a médica, o apoio espiritual também é importante. Guilherme concorda. "O que nos ajudou foram as crenças, acreditamos no processo de continuidade. Abraçamos o processo da morte e caminhamos juntos. Vivemos momentos lindos e difíceis. A cada manhã, quando eu acordava, eu tinha um pouco menos dele. Acordar e constatar que ele estava um pouco mais magro, um pouco mais fraco, depois uma dificuldade de se ajeitar na cama, depois a fralda, a impossibilidade de falar... mais magro, mais magro, mais fraco...", contou.

 

 

Um diagnóstico de câncer na coxa, formalmente chamado de tumor de partes moles, a recusa da amputação da perna e os cuidados paliativos na fase terminal. Conheça a história do marceneiro Eduardo Silva, contada pelo seu filho, o jornalista Eduardo Silva Júnior.

 

 

 

A eutanásia e o suicídio assistido não são permitidos no Brasil, e, sendo a distanásia a prática mais comum aplicada aos pacientes com doença terminal, é possível fazer um testamento vital para evitar o prolongamento do processo de morte. O testamento vital é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou aos quais não quer ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitada de manifestar livremente sua vontade. Caso queiram, as pessoas podem registrar essas disposições em cartório.

As diretivas antecipadas de vontade, estabelecidas pela Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), afirmam que o médico deve respeitar o que foi definido pelo paciente que não quer prolongar sua vida quando não for possível recuperá-la para que viva com dignidade. A família também pode solicitar que o paciente não receba tratamento para prolongar sua vida, caso saiba ser esta a vontade do doente. Porém, como não se trata de previsão legal, não há garantia de que a vontade da pessoa será respeitada, pois os médicos, muitas vezes, se sentem reféns da insegurança jurídica, ainda que amparados pela resolução do CFM.

Uma vez que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, muitos profissionais do direito e da saúde acreditam que o prolongamento da vida por meio de medicamentos e aparelhos, a distanásia, fere tal previsão constitucional porque imprime intenso sofrimento ao doente.

Na visão da desembargadora do TJMG Evangelina Castilho Duarte, em artigo publicado na Biblioteca Digital da Ejef, “a medicina é a arte da cura e existe para assegurar a vida. Porém, só se justifica seu exercício se for para garantir vida com dignidade, com ação, com atuação, com interação. Não pode a medicina tornar-se um fim em si mesma, adotando procedimentos que não estejam conduzindo à cura e que se limitam a prolongar a vida sem expectativa”.

Leia o artigo na íntegra.

 

 

Guilherme conta que havia um combinado entre eles de que o companheiro não iria viver sedado as 24 horas do dia nem à custa de aparelhos. "Para mim, a sedação é uma forma de eutanásia, porque só fica o corpo biológico da pessoa. Foi-nos sugerida a sedação quando ele não falava mais. Pedi para que ele piscasse os olhos em resposta e ele preferiu se manter acordado durante o dia. Acho que qualquer forma de indução à morte só pode acontecer quando a pessoa não é mais capaz de interagir", diz.

A advogada Luciana Dadalto estudou o direito à morte em suas pesquisas de mestrado e doutorado, administra o site Testamento Vital e auxilia pessoas a elaborarem seus testamentos vitais. Segundo ela, a maioria das pessoas que fazem o documento é paciente oncológico ou viveu processos de obstinação terapêutica com familiares. No testamento vital, a pessoa manifesta sua vontade, seja ela positiva ou negativa, no sentido de querer ou não receber determinados tratamentos, explica a advogada.

No caso do Brasil, Dadalto avalia que o país ainda não tem amadurecimento social para discutir a eutanásia e o suicídio assistido. "A sociedade brasileira é uma sociedade que restringe a autonomia. E creio que legislações devem sempre ser produtos do clamor social".

Cristiana Savoi também acredita que, diferentemente de outros países que têm a autonomia do sujeito como um valor fundamental, a sociedade brasileira ainda é muito protetora, há um certo tabu para falar da finitude da vida. Para ela, é esse viés religioso judaico-cristão – de que a vida deve ser preservada a qualquer custo – que impede a discussão sobre os processos de morte e da morte assistida. "Precisamos de uma conversa sobre a morte que ainda não existe. As pessoas precisam começar a pensar sobre isso, todos vão morrer e a discussão deve estar presente na sociedade, nas equipes de saúde, entre os legisladores e os julgadores", concluiu.

 

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