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29/10/18 11:22

 
 

 

A cada som surdo do portão que se fechava atrás dele, e ao conhecido ruflar de chaves destrancando celas, o coração de José* se acelerava. Depois de exatos 2.327 dias, durante os quais ficou encarcerado na Nelson Hungria, em cumprimento de uma sentença de detenção, em regime inicial fechado, o dia mais desejado por ele havia chegado: aquele 5 de setembro de 2016, em que poderia novamente reencontrar o mundo, além dos muros altos, cercados por arames farpados e sentinelas, da penitenciária de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

Tirar o uniforme vermelho e as algemas que o acompanharam até quase a saída do presídio e dar o passo decisivo para fora dos limites daquele lugar era um sonho que finalmente se concretizava. Começou a caminhar e a sensação de liberdade pareceu-lhe sufocante. Estava livre, havia cumprido seu débito com a Justiça. Mas a sociedade o teria perdoado? No bolso, o dinheiro para a passagem de ônibus até a casa da mãe. No corpo e na alma, sentia como se ali estivesse tatuado: “ex-presidiário”.

Descobertas e reencontros o inebriaram nas primeiras horas de liberdade, mas a realidade batia na porta e na consciência a cada minuto, lembrando a urgência de conseguir um emprego. Com baixa escolaridade – uma característica comum ao preso brasileiro – e, ainda por cima, egresso do sistema prisional, ele não vislumbrava dias fáceis. Suas previsões se concretizariam: foram dois anos em busca de uma oportunidade, aqui e ali, mas até hoje tem que se contentar com os chamados “bicos”. “Que chance terá uma pessoa como eu?”, indaga, angustiado. E as tentações do mundo do crime logo ali na esquina, à espreita.

 

 

 

 

José é um personagem fictício, mas a história dele encontra vários exemplos concretos na vida real. Inserir ex-presos novamente na sociedade, desvelar as dificuldades pelas quais passam, depois de cumprir suas penas, sensibilizar as pessoas para esse drama adicional vivenciado por eles são desafios para comunidades de todo o mundo, e marcam diferentes épocas. O clássico Os miseráveis, de Victor Hugo, narra em suas páginas a saga do personagem principal, Jean Valjean, que viu todas as portas se fecharem para ele após os anos de encarceramento. A história se passa na França, no remoto século 19.

Cada vez mais o Brasil terá de enfrentar esse problema: o País ostenta, no século 21, a terceira maior população penitenciária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. São mais de 725 mil pessoas privadas de liberdade, ocupando estabelecimentos prisionais que possuem, juntos, menos de 370 mil vagas. A superlotação é uma realidade, ao lado da violência, do domínio de facções criminosas, de condições de insalubridade, da precariedade das estruturas. Como recuperar a dignidade e reconstruir vidas que por anos estiveram submetidas a condições degradantes?

Para o egresso do sistema prisional, em especial para aqueles que passaram por longos anos de encarceramento, as dificuldades são diversas, e vão muito além do mercado de trabalho: é preciso se readaptar a um mundo que se transformou, tentar reconstruir laços afetivos desfeitos, encontrar meios de subsistência e resistir à tentação de voltar ao crime. Despejado das prisões para as ruas, todos os anos, sem que uma rede de proteção social o sustente, um contingente formado principalmente por homens em idade produtiva precisa sobreviver – material e psicologicamente.

As dificuldades que essas pessoas enfrentam são um dos motivos para a alta taxa de reincidência criminal no Brasil: o índice chega a 80% no sistema prisional comum. “Um dos grandes problemas enfrentados pelos egressos é o preconceito das pessoas que podem gerar emprego em relação àquelas que passaram pelo sistema prisional. Há um verdadeiro estigma de que elas estão mortas, como se tivessem recebido um atestado de óbito social: não podem mais frequentar o espaço público e ter oportunidades na sociedade”, avalia o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, auxiliar da Presidência do TJMG, que foi titular da Vara de Execuções Penais de Belo Horizonte.

Ouça aqui áudio do juiz Luiz Carlos Rezende e Santos sobre o preconceito enfrentado pelo egresso e sobre a importância do regime semiaberto

 

 

Para o juiz, que hoje assessora a Presidência do Tribunal mineiro, nos assuntos penitenciários e de execução penal, e é coordenador-executivo do programa Novos Rumos, a comunidade e a sociedade têm que entender que, para a diminuição da criminalidade, “é preciso dar uma segunda chance aos que estiveram presos, permitir que se qualifiquem, que tenham oportunidades de trabalho”, ressalta. Por isso, o magistrado é hoje um dos grandes entusiastas das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs), que o Tribunal mineiro tem se empenhado em difundir.

As Apacs são unidades que recebem pessoas condenadas a cumprir penas privativas de liberdade, mas dentro de uma metodologia bastante distinta do sistema prisional comum. Na base dessas associações está a humanização do cumprimento das penas privativas de liberdade. Todos os recuperandos, como são chamados os presos ali, devem estudar e trabalhar. Além da dignidade com que a pena deve ser cumprida nas Apacs, há a participação das famílias dos presos e de voluntários durante o período de reclusão.

Valdeci Ferreira, diretor-executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (Fbac), entidade que administra e fiscaliza as Apacs, avalia que a reincidência tem relação com os obstáculos que os ex-presidiários encontram no retorno à vida em sociedade. “O sistema prisional está falido. Foram séculos de total abandono. A pessoa é presa, condenada e não recebe tratamento, no sentido amplo da palavra: médico, odontológico, psicológico. E não há capacitação profissional, educação. Pelo contrário, a pessoa fica completamente ociosa, dia e noite, sem ter o que fazer, pensando em como recuperar o tempo perdido quando estiver livre, alimentando o ódio e o desejo de vingança.”

Por isso, para Valdeci Ferreira, as prisões, da forma como são engendradas, pioram os indivíduos. “A pessoa sai e, geralmente, os crimes cometidos quando da reincidência são mais violentos que aqueles cometidos na primeira vez.” Ele alerta ainda para o elemento novo: as facções criminosas, que dominam mais e mais o interior das prisões brasileiras e cuja ação estende-se agora para o meio externo. “Estou convencido de que as facções criminosas ocupam exatamente o espaço vazio deixado pelo Estado, que na sua omissão não cumpre aquilo que está preceituado na lei de execuções penais, no tocante aos direitos e aos deveres dos presos. Ao final, o Estado e a sociedade acabam se tornando reféns desses grupos. A prisão é um ambiente criminógeno por excelência”, afirma.

 

 

 

“Conheci o crime dentro da prisão”, declara Gualter José Vieira Scardini, comprovando as palavras do diretor-executivo da Fbac. “Fui preso pela primeira vez aos 21 anos, em Aracruz (ES). Eu era inocente, tinha bons antecedentes, fazia faculdade de Enfermagem, tinha endereço fixo, mas fui pego dentro de um carro com um traficante portando drogas. Fui condenado e jogado em um lugar onde só havia bandidos”, conta Scardini, que passou cerca de três anos em prisões no Espírito Santo, período em que assistiu a várias rebeliões e chegou a ficar na Casa de Custódia de Viana, considerada o pior presídio da América Latina, quando ele esteve por lá. “Se eu pudesse resumir esse tempo na prisão em uma palavra, seria ‘desumanidade’”.

 

 

 

Foi naquele ambiente de sofrimento que ele afirma ter decidido entrar para o crime. “Eu era inocente quando recebi a primeira condenação, mas não era quando recebi minhas outras duas sentenças: da prisão, comecei a traficar e fui pego em escutas telefônicas”, conta. Pelas três condenações, a pena total recebida por ele foi de 32 anos. “Consegui responder aos dois processos em liberdade, mas aí veio a condenação. E eu pensei: ‘pelas minhas próprias pernas, não volto para aquele sofrimento’.” Quando foi novamente preso, em Minas, em 2011, encontrou nos presídios a mesma crueldade que já havia vivenciado. “Mas, então, Deus colocou no meu caminho a Apac de Santa Luzia.”

A ida para a Apac, onde ficou cerca de quatro anos, foi o bote salva-vidas que o reergueu. “O sistema prisional comum tira da gente toda a nossa sensibilidade. A Apac trouxe isso de volta. Ela me ajudou a jogar fora tudo de ruim que eu havia passado e me humanizou de novo.” Com a autoestima e a dignidade recuperadas, ele conseguiu, agora que já está mais próximo de cumprir seu débito com a Justiça, construir para si outro destino. Hoje, aos 35 anos, e cumprindo o regime aberto, possui dois empreendimentos, nos quais emprega quatro ex-recuperandos e um recuperando do regime semiaberto.

 

 

Além da Apac, Gualter reconhece que a base familiar que ele possuía foi fundamental em seu processo de ressocialização. Por isso, o diretor da Fbac, Valdeci Ferreira, identifica na fragmentação da família um dos aspectos mais decisivos na reincidência criminal: “Em 98% dos casos, ela está enferma. Via de regra, o preso vem de núcleos familiares muitas vezes violentos, são filhos de famílias separadas, que cada vez oferecem menos condições para que as pessoas em liberdade possam encontrar um porto seguro para caminharem novamente”, observa, lembrando ainda que, com o tempo, muitos familiares distanciam-se dos presos.

Outro fator que ele destaca é o desemprego: “Se não há emprego nem para quem tem formação e bons antecedentes criminais, imagine para quem está saindo de uma prisão e traz em seu histórico a experiência triste de um dia ter cumprido pena. Além disso, muitos presos não estão preparados para o mundo do trabalho e não recebem capacitação profissional. Na maioria das vezes, aqueles que cumprem pena não têm profissão definida e mais de 70% deles nunca trabalharam com carteira assinada”, explica o diretor-executivo da Fbac.

Mas o terceiro fator, e o mais grave deles, para Valdeci Ferreira, é a dependência química. “É difícil hoje você ter um bairro onde não existam pelo menos um ou dois pontos de venda de drogas. Aqueles que têm dependência química saem das prisões do mesmo jeito que entraram. A questão é que a grande maioria dos crimes é cometida tendo como agente principal as drogas. Hoje, na minha avaliação, esse é o maior desafio e o fator que mais contribui para o aumento da reincidência no nosso País”, avalia.

Vídeo: Conheça aqui os três regimes de cumprimento da pena: fechado, semiaberto e aberto

 

 

 

A Lei de Execução Penal estabelece que o cumprimento da pena privativa de liberdade deve se dar de forma progressiva – regimes fechado, semiaberto e aberto –, em uma tentativa de reinserir gradativamente o preso na sociedade, permitindo a ele algumas vivências fora da prisão. Um dos objetivos é exatamente o de minimizar as chances de reincidência. O semiaberto, em especial, seria uma espécie de transição, já que, pela lei, nessa modalidade o indivíduo pode participar de cursos, ter um trabalho externo e realizar saídas temporárias para visitar a família.

Dessa maneira, para o juiz Luiz Carlos, o semiaberto acaba se configurando como uma fase fundamental no sistema prisional. “O legislador brasileiro acertou muito nisso, porque é uma forma de, aos poucos, a pessoa ser recebida de volta à sociedade e ir se reencontrando com a vida social”, avalia. Para isso, lembra, é preciso que, durante o regime fechado, o preso receba uma capacitação profissional, tendo acesso a cursos profissionalizantes, e se qualifique melhor no ponto de vista educacional.

 

 

 

 

Poder trabalhar e recuperar a dignidade, deixando para trás o ambiente hostil das prisões, foi decisivo para enfrentar a vida após o cárcere, reconhece Frederico Leão, egresso do sistema prisional. Chance que ele teve somente após passar pela Apac. “A oportunidade encontrada ali mudou minha vida, não só quando fui aceito como recuperando na unidade de Campo Belo, mas também quando fui contratado pela Apac de Nova Lima como estagiário, tendo sido também, posteriormente, indicado para estágio no TJMG”, relata.

Frederico foi preso em 2007, aos 21 anos, com comprimidos de ecstasy. Cursava Administração, em Belo Horizonte, para onde havia se mudado para estudar, vindo de Campo Belo. “Fui preso numa sexta-feira e passei o primeiro final de semana no Departamento de Investigações da Lagoinha. Na segunda-feira, já éramos quase cem presos em uma cela, nos revezando para deitar no chão e dormir. Foi desesperador e, para piorar, eu não tinha noção nenhuma de quanto tempo de pena eu poderia pegar”, revela.

De lá, Frederico foi transferido para o Ceresp Gameleira. Veio a condenação a três anos e a permissão para cumprir a pena em Campo Belo. A mãe dele ficou sabendo sobre a existência de uma Apac naquela cidade. A presidente da unidade tinha sido professora de ensino religioso do rapaz. A transferência para lá foi autorizada pela Justiça. “Logo na chegada à Apac, senti a diferença: os policiais que me conduziam foram impedidos de entrar com armas ali e eu não poderia entrar algemado”, relata.

Iniciou-se um processo de transformação e de capacitação. “Saí do Ceresp, onde tomava banho frio, não tinha informação de nada, recebia visitas apenas a cada 15 dias, e cheguei na Apac. A diferença era gritante e agarrei aquela oportunidade”, recorda-se. Em 2009, ele pediu autorização para prestar o vestibular e foi aprovado. “Além da oportunidade de estudar Direito, após minha passagem pela Apac, fui auxiliado em desafios futuros, como, por exemplo, o de recolocação profissional. Hoje sou advogado, com registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e realizo defesa perante um Tribunal que anteriormente negou-me a concessão de habeas corpus”, declara, orgulhoso da trajetória que foi capaz de construir. “A Apac me fez sair do cárcere de cabeça erguida, certo de que havia muito futuro pela frente”, relata.

Vídeo: Conheça aqui a história de Ulisses Henrique Pires Andrade, que está cumprindo pena na Apac de Santa Luzia

 

 

 

O programa Novos Rumos, iniciativa do TJMG que reúne ações diversas, em prol da humanização no cumprimento das penas privativas de liberdade, possui uma iniciativa com foco no recomeço de quem esteve preso, pois, como relata o ex-recuperando Frederico, o mercado de trabalho é um desafio para o egresso e um fator decisivo para a vida pós-prisão. O foco do Programa Pró-Apac, gerido pelo Instituto Minas pela Paz em parceria com a Fbac, é ampliar as chances de ressocialização do egresso do sistema prisional.

Por meio do Pró-Apac, o Instituto Minas pela Paz tem desempenhado papel fundamental na história das unidades, mudando a vida de tantos que passam por elas. O Instituto congrega as maiores empresas do país e atua exatamente na capacitação técnica e profissional, necessária para preparar os recuperandos para retornarem ao convívio social. Por meio da parceria, foram realizadas centenas de cursos profissionalizantes nas Apacs, no âmbito do Serviço Social da Indústria (Sesi), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), entre outras entidades.

“É fundamental também a mobilização que o Instituto Minas pela Paz faz junto à iniciativa privada, às empresas, de modo que hoje nós temos em várias Apacs linhas de produção que permitem que os recuperandos possam trabalhar e receber algum recurso econômico para ajudar seus familiares, ao mesmo tempo em que se capacitam profissionalmente para voltar ao convívio social”, avalia Valdeci Ferreira, da Fbac. Trata-se de uma iniciativa que permite que as associações sejam exitosas em seus propósitos: nelas, a taxa de reincidência criminal de ex-recuperandos é de aproximadamente 20%.

 

 

 

Se depender de Deivid Avelino dos Santos, ele não aumentará essa estatística. Depois de passar todo o final da adolescência e boa parte da juventude atrás das grades, ele vislumbra dias de liberdade distantes do crime. O jovem abandonou os estudos antes do ensino médio, mas, na prisão, mergulhou na leitura e no universo das leis. “Sempre gostei de estudar. Comecei a ler livros de Filosofia, de Direito e a pesquisar a questão carcerária”, conta, mostrando o último dos três livros que acaba de escrever, intitulado Sistema carcerário: os efeitos. Na introdução da obra, uma citação do famoso estudo histórico Vigiar e Punir, do filósofo francês Michel Foucault.

Deivid tinha 18 anos quando foi preso. Nunca mais voltou à região do Barreiro, onde viveu seus tempos de liberdade, tinha amigos e estudava. A prisão suspendeu seu futuro. Passou por sete estabelecimentos carcerários nesse meio tempo, sempre no regime fechado, fase que define como de grande sofrimento para ele e a família. “O ambiente era de muita violência psicológica, muita opressão: bombas, tiros, xingamentos. E minha mãe entrava no pátio chorando por causa das revistas humilhantes”, lembra. Hoje, aos 28 anos, ele está no regime fechado na Apac de Santa Luzia.

“Sonho com o dia em que poderei ir para o semiaberto, quando terei sete dias de saída temporária, cinco vezes por ano. Já sei exatamente o que vou fazer na primeira semana que sair”, diz. Planeja a ida a cada lugar aonde pretende ir e se informa sobre os documentos que terá de providenciar, a fim de iniciar a conquista da carteira de motorista. Durante o semiaberto, outro objetivo dele é cursar Direito, área sobre a qual tem se interessado cada vez mais. “Sonho muito com os dias de liberdade, mas mantenho os pés no chão. No Brasil, não existe pena de morte física, mas sei que existe a pena de morte social”, afirma, com lucidez.

 

 

 

 

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