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05/09/17 14:22

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“As ruas estavam asfaltadas. Eu não reconhecia as casas do caminho, passei por um bairro inteiro que eu nunca tinha visto. Meu irmão parou o carro em frente a uma casa que eu também não reconhecia. Era da minha mãe. Pintura nova, muro mais alto e dois cômodos a mais. Os celulares também mudaram, nem consigo mais mexer neles, fiquei parado no tempo. (...) Meu filho cresceu, está maior do que eu. Garotos que estavam nas fraldas quando fui embora, agora estão no crime. (...). A vida passa por nós em segundos. E foram muitos segundos na cadeia. O mundo mudou.”

O trecho acima é a narrativa de um ex-recuperando da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) de Itaúna. Em poucas palavras, o fragmento, publicado em uma revista produzida pelos próprios recuperandos da associação – Estrela –, nos dá uma vaga ideia do isolamento que a prisão pode provocar e do estranhamento vivenciado por quem esteve durante anos cumprindo pena privativa de liberdade. São existências encarceradas e mantidas invisíveis para a sociedade, que só lhes lança algum olhar quando os precários presídios brasileiros se tornam palcos de rebeliões, motins e massacres.

Quando os presídios são notícia, chegam até nós imagens e relatos chocantes: celas superlotadas, úmidas e quentes, péssimas condições de higiene, revistas vexatórias de visitas, violência policial e entre os próprios presos. Mas a indignação dura pouco, até porque uma parcela da sociedade parece acreditar que as torturas físicas e psicológicas, que se desenrolam diariamente, em uma clara violação aos direitos humanos, devem fazer parte da pena.

Mas, se a voz do recuperando autor do relato acima chegou até a sociedade, foi graças a um projeto realizado em uma unidade que aposta em um modelo de cumprimento de pena diferente da metodologia adotada no sistema prisional comum. Seu alicerce é a fé inabalável na recuperação de quem cometeu um delito. “Todo homem é recuperável” e “Todo homem é maior que seu erro” são algumas das premissas que o sustentam. O método se concretiza por meio das Apacs, entre as quais, no Brasil, está a de Itaúna, a primeira a nascer em Minas.

 

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Cidade de aproximadamente 100 mil habitantes, localizada a 80km da capital mineira, Itaúna viu surgir uma Apac depois de uma rebelião na cadeia local, que, totalmente incendiada, tornou-se imprópria para abrigar os presos da comarca. Era década de 90. Valdeci Antônio Ferreira tinha 24 anos de idade, um coração cheio de compaixão e disposição para mudar a história. Depois de experiências em presídios, graças à sua atuação na pastoral carcerária, ele conheceu a metodologia, que havia sido idealizada pelo advogado Mário Ottoboni e já era colocada em prática desde 1972, em São José dos Campos, interior de São Paulo.

Valdeci tornou-se incansável, até conseguir o apoio do Judiciário mineiro e fundar a primeira dessas associações em Minas – a Apac masculina de Itaúna. “Foi preciso romper o preconceito da sociedade e fazer todo um trabalho de convencimento das autoridades”, lembra-se. Desde então, ele mantém uma articulação permanente com o Judiciário para levar a experiência aos diversos estados, e hoje é o diretor executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), que agrupa, administra e supervisiona as Apacs no Brasil e assessora as instaladas no exterior.

 

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Em Minas, Valdeci obteve o apoio irrestrito e fundamental do juiz Paulo Antônio de Carvalho, da 1ª Vara Criminal, do Júri e de Execuções Penais de Itaúna. Com o tempo, também conseguiu o apoio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que em 2001 criou o programa Novos Rumos da Execução Penal para, entre outras iniciativas, disseminar as Apacs pelas comarcas mineiras. Hoje, já são 39 unidades da associação no estado – são 48 em todo o País, algumas dedicadas à população carcerária feminina.

Na Apac masculina de Itaúna, a exemplo das demais unidades do gênero, a metodologia funda-se em 12 elementos, entre eles a participação da comunidade, o trabalho, a valorização humana, a família, a assistência jurídica e à saúde e o voluntário e sua formação. “A disciplina e as rotinas são rígidas. Quem não completou ainda o ensino médio e/ou o fundamental deve estudar e todos devem trabalhar”, explica Valdeci. Não há vigilância armada e a polícia não se faz presente: ali, recuperando cuida de recuperando. Além deles, o que se vê são funcionários, como uma técnica de enfermagem, uma nutricionista e um padeiro, e voluntários.

Atualmente, há em Itaúna recuperandos nos regimes fechado, semiaberto trabalho intramuros e semiaberto trabalho externo. Presos do regime fechado dedicam-se ao artesanato, em oficinas de laborterapia. A ideia é que das mãos que cometeram crimes surjam objetos belos – um delicado crochê, um brinquedo de madeira, uma peça em mosaico. No semiaberto, como o recuperando está a alguns passos de sua liberdade, o foco são trabalhos executados em oficinas profissionalizantes: marcenaria, serralheria, panificação, cozinha e composição de peças automotivas – por meio de convênio com a empresa Magneti Marelli, fornecedora da Fiat.

 

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A Apac masculina de Itaúna localiza-se em um bairro residencial em Itaúna, e quem passa por ali vislumbra apenas os muros altos, pintados de azul, onde não figuram as conhecidas torres de sentinelas armadas dos presídios comuns. Ao atravessar os seus portões, depara-se com um pátio, um jardim, recuperandos sem uniformes circulando pelos espaços. Há galpões de oficinas aqui e ali, uma generosa horta, um viveiro de mudas. Não parece se tratar de um presídio, e a ideia é mesmo essa. No sistema fechado, há celas com grades, cadeados e ferrolhos, mas as chaves ficam com os próprios presos.

 

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O juiz Paulo Antônio de Carvalho lembra-se de, inicialmente, não ter se convencido de que a Apac seria um projeto viável. Hoje, ele é um grande divulgador da metodologia e circula com frequência pelas instalações da Apac de Itaúna, em meio aos recuperandos, que, em sua maioria, foram condenados por ele. “Isso já mostra uma diferença da Apac. Eu encontro ex-recuperandos nas ruas da cidade e eles não se afastam de mim, ao contrário, fazem questão de me cumprimentar, de me contar como está a vida deles”, afirma.

Na metodologia, ressalta o magistrado, o envolvimento da comunidade e das famílias na transformação do recuperando é imprescindível. “Os familiares, em especial, são fundamentais. Eles precisam participar de cursos e cumprir as regras, contribuindo efetivamente para a recuperação dos recuperandos”, diz. O ambiente que se busca criar precisa ser permeado por respeito e afeto. “O método é todo baseado na confiança. Já ouvi recuperandos afirmarem ‘Hoje me sinto como gente’, o que revela que não se sentiam assim antes”, conta o juiz. Ele se lembra do ex-recuperando Zé de Jesus, que não parava em presídio nenhum e, uma vez na Apac, nunca mais fugiu. Questionado sobre isso, o condenado disse: “Do amor ninguém foge”.

 

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A FBAC, que administra e fiscaliza as Apacs, é vinculada à Prison Fellowship International (PFI), organização não governamental que atua como órgão consultivo da ONU em assuntos penitenciários. A PFI foi criada nos EUA, em 1976, por Charles Colson, que a fundou depois de deixar a prisão, onde cumpriu pena pelo envolvimento no escândalo Watergate, quando era assessor do presidente norte-americano Richard Nixon. Quando visitou a Apac de São José dos Campos, o fundador da PFI deixou ali a seguinte mensagem: “Esta é a única prisão de que não tive vontade de sair. A Apac é um milagre”.

 

 

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Os pequenos “milagres”, para quem chega à Apac de um presídio comum, estão muitas vezes nos detalhes. Almoçar com pratos e talheres, beber água filtrada e gelada, tomar banho quente e de chuveiro, abandonar os uniformes, não ter os cabelos raspados, poder andar de cabeça erguida e sem as mãos para trás, dormir em uma cama, sem precisar revezar espaço no chão com presos em uma cela superlotada, ter oportunidade de trabalhar e estudar e assim redimir a pena. Em especial, ser chamado pelo próprio nome, o que, de imediato, já permite um resgate da própria identidade.

“Nos dez meses em que fiquei em uma cadeia, não recebi nenhuma visita, por causa do constrangimento das revistas que eram feitas. Eu me sentia abandonado. Ficava em uma cela sem fazer nada, com 33 presos, mas a capacidade dela era para apenas nove. Eu recebia a comida pela grade e não havia talher – a gente usava a tampa do marmitex para comer. E vi muita covardia lá sendo cometida contra os presos”, lembra Renato Diego de Souza, de 31 anos, que cumpre pena hoje na Apac de Itaúna, para onde foi transferido há pouco mais de cinco anos.

 

 

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Sentenciado a 22 anos e 9 meses de prisão em regime inicial fechado, Renato tem nítido na memória seu primeiro dia na cadeia. “Foi um susto, e achei que não sairia dali vivo. Eu preferia acabar com a minha vida a ficar ali, porque daquela maneira eu não queria viver.” O dia em que chegou à Apac também deixou sua marca. “Assim que cheguei, pediram para eu levantar a cabeça e me acolheram. Recebi roupas limpas. Não havia policiais”, conta. As oportunidades foram se abrindo. “Voltei a estudar, concluí o ensino médio e daqui a alguns dias farei o vestibular para engenharia elétrica. Quero realizar o sonho que tenho desde a adolescência: ser engenheiro”, afirma.

 

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O sonho interrompido do recuperando João Marcelo de Oliveira, de se tornar jornalista, também foi renovado a partir da ida dele para a Apac de Itaúna, há cerca de um ano. Foram nove anos e meio no sistema prisional comum e quatro fugas. Com uma pena total de 25 anos e meio, ele foi preso pela primeira vez aos 23 anos. Hoje, aos 41, e ainda no regime fechado, ele afirma que a Apac foi a luz que surgiu no “fim do túnel” que ele percorria, até então às cegas. “Na prisão não éramos tratados como pessoas. Eu sofria torturas físicas e psicológicas, achavam que eu era irrecuperável. Aqui, é diferente. O tempo na Apac está me transformando”, reconhece.

 

 

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Transformação é, talvez, uma das palavras mais representativas para o método apaquiano. É preciso “matar o criminoso e salvar o homem”, proclama um de seus lemas. Para além da questão humanitária, que se traduz sobretudo em oferecer condições dignas para o cumprimento das penas, existe a forte consciência de que o preso irá retornar à sociedade, daí a urgência de prepará-lo para esse momento, minimizando as chances de que ele cometa novos crimes. Por isso, entre tantas iniciativas que surgem nas diversas Apacs e visam a essa transformação, está uma da ONU que começou recentemente a ser aplicada na Apac de Itaúna, ainda de maneira embrionária: o projeto Árvore Sicômoro.

O nome faz referência a uma espécie vegetal comum no Oriente Médio. São árvores de troncos fortes, grandes copas, folhas em formato de coração e frutos que crescem em grupo. Na simbologia bíblica, significam redenção. Na Apac de Itaúna, o projeto traz também o significado do perdão: ele busca aproximar vítimas e/ou familiares de seus agressores. A ideia que o sustenta é a de que, quando a vítima perdoa, é ela a maior beneficiada, pois isso permite que ela retome a vida de maneira mais plena após a perda.

 

 

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Iniciativa impensável nos moldes como o sistema prisional comum se organiza hoje, no qual nem mesmo os direitos básicos dos presos são respeitados, a aproximação entre vítima e agressor traz em si um germe revolucionário. Uma história que mostra um pouco os efeitos disso é a de Raimunda Maria da Conceição. Em 1996, ela viveu o maior pesadelo de toda mãe quando seu único filho, de 21 anos, foi assassinado. O agressor era menor, e em determinado momento da vida Raimunda teve a oportunidade de estar diante da mãe dele e dizer-lhe que perdoava o assassino.

Raimunda já atuava como voluntária na Apac de Itaúna, quando o crime aconteceu. Após a morte do filho, ela empreendeu uma jornada ainda maior, em prol da recuperação dos jovens que cumpriam pena ali. De 1998 a 2000, chegou a presidir a entidade. “Eles todos se tornaram meus filhos. Salvando-os, era como se eu estivesse fazendo algo pelo meu filho também, e era uma forma de eu contribuir para que, quando saíssem dali, não cometessem mais crimes, para que nenhuma mãe passasse pelo que passei”, diz. Sobre a experiência do perdão, ela diz, sem hesitar: “É o que nos devolve a paz”.

 

 

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