Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Sensibilidade para o preso: juízes defendem humanização

Italianos e o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, entre outros, falaram de ressocialização


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Plateia em auditório acompanha debates
Discussões densas, instigantes e emocionantes dominaram a tarde

Na tarde desta quinta-feira, 11 de julho, o segundo dia do seminário Tratamento Penitenciário e suas Consequências pôs em contato o conhecimento de magistrados italianos, brasileiros e de membros da Fraternidade Brasileira de Apoio ao Condenado (FBAC). 

A discussão, mediada pelo juiz Ernane Barbosa Neves, da Comarca de São João del-Rei, começou com exposições dos juízes de execução penal de Milão Simone Luerti e Monica Cali. Além de apresentarem estatísticas da Europa e da Itália, eles compartilharam experiências e angústias decorrentes do encargo de acompanhar a quitação das obrigações dos presos.

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Da esq. para a dir., Valdeci Ferreira, Jacopo Sabatiello, o juiz auxiliar da Presidência Luiz Carlos Rezende e Santos e Roberto de Carvalho

Na segunda parte da tarde, houve um painel com mediação de Jacopo Sabatiello, diretor vice-presidente da Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI – Brasil), que aproveitou para comentar brevemente o projeto Más Allá de las Fronteras, em vias de levar as Apacs a três países da América Latina — Costa Rica, Chile e Paraguai —, em uma cooperação entre a AVSI Brasil, a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC) e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

A mesa “Alternativas penais ao sistema penitenciário convencional: a experiência do método Apac” reuniu o diretor executivo da FBAC, Valdeci Antônio Ferreira; o juiz auxiliar da Presidência do TJMG Luiz Carlos Rezende e Santos; e o gerente de metodologia da FBAC, Roberto Donizetti de Carvalho.

Aprender a ser humano

Simone Luerti destacou que, apesar de a realidade de seu país ser bastante diferente – uma população carcerária total de 60 mil pessoas e a ausência de rebeliões e motins desde a década de 1970 – e de o Brasil passar por um cenário de emergência, há problemas comuns, como a superlotação e o deficit de vagas, ainda que em graus distintos.

Juiz fala da mesa de honra em auditório
Simone Luerti destacou que a pena não propicia vingança; mas, se excessiva, pode criar um senso de injustiça e faz o Estado cometer ilegalidades

O magistrado citou o impacto que sentiu quando de sua visita à Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Itaúna, em agosto de 2018. Ele se impressionou ao ver que o juiz Paulo Antônio de Carvalho cumprimentava cada um dos recuperandos, era procurado por eles e conversava sobre assuntos pessoais.

“Em uma frase, vi nele um grande professor do modo como deve se comportar um juiz de execução. A partir desse momento, tive centenas de conversas com as pessoas que acompanho. Essa vivência, além de me dar uma nova perspectiva, tornou meu trabalho muito mais interessante”, conta.

Um ponto destacado pelo juiz é que não se pode perder de vista o sentido de expiação da privação de liberdade. Essa dimensão não está isolada da reeducação e ressocialização, e não existe apenas para a população, que vê nisso uma sanção àqueles que agridem a sociedade, mas para o próprio preso.

Três magistrados em mesa de honra
Os juízes Simone Luerti, Ernane Barbosa e Monica Cali trocaram experiências sobre a Justiça brasileira e a italiana

“Em meu trato com os presos, observo que frequentemente há um sentimento de orgulho e realização quando a pessoa diz: ‘Doutor, eu paguei pelos meus erros, estou limpo de novo’. A execução penal deve tender à reeducação, mas isso pode não acontecer. A resposta positiva depende da vontade do condenado”, afirma.

Ele falou ainda sobre como, no diálogo com os presos, vários relatam uma compreensão, ao longo dos anos, de seu percurso, erros, acertos, possibilidades futuras e autoconhecimento. Eles veem a prisão “como uma interrupção de uma vida distorcida que levaria à destruição”, e do sofrimento como algo que leva a uma abertura para a mudança.

Sobre as Apacs, Luerti frisou que artigos acadêmicos até recentes sustentam a impossibilidade de reforma do sistema penal e penitenciário, mas isso é uma concepção abstrata. “A prática contradiz isso. E isso, sim, é realidade, não fantasia”, defendeu.

Responsabilidade

"Mesmo tendo 25 anos de atuação na execução da pena, ainda considero que é uma tarefa extremamente difícil, e que temos todos muito a aprender", afirmou a juíza Monica Cali. Segundo a magistrada, os desafios surgem pelo fato de se lidar com seres humanos.

“Pessoas não amadurecem como maçãs ou peras, e decidir sobre a vida delas, mesmo com o auxílio de um sistema de apoio – assistentes sociais, promotores de justiça e policiais –, ajuda, mas não resolve. Somos juízes de pessoas. Sustentamos os condenados, dando ou negando oportunidades a eles”, frisou.

Juíza fala em palestra
A juíza Monica Cali disse que apenas quatro países da União Europeia têm número de vagas suficiente para sua população carcerária

Cali explicou que não existe um direito penitenciário europeu, porque os estados da União Europeia têm situações distintas (financiamento das unidades prisionais, critério de superlotação, normas legais e processuais).

Contudo, o Conselho Europeu recomenda a adoção de medidas, a promoção dos direitos humanos e a centralidade do indivíduo. Entre as exigências estão a decência, a higiene e a saúde, a criação de motivação de longo prazo (atividades esportivas, recreativas, artísticas, laborais, de instrução formal), privacidade, o convívio com a família, o direito de voto e até de representação, por meio de associações ou sindicatos.

“A ideia é tornar a vida do preso o mais próxima possível da vida civil externa. É um programa ambicioso, atendido em maior ou menor escala nos diferentes países. Mas é certo que a segurança dinâmica procura imitar o que há de mais positivo em múltiplas boas práticas”, concluiu.

Coragem, verdade e sinceridade

Com 36 anos de dedicação à metodologia Apac, Valdeci Ferreira exprimiu sua convicção de que o problema das prisões está fora delas, no preconceito, na insensibilidade e na sede de vingança de parcela da sociedade, e na descrença, indiferença ou omissão das autoridades constituídas.

Diretor da FBAC fala no auditório
Valdeci Ferreira exprimiu preocupação com os riscos de, diante do êxito das Apacs, o modelo ser expandido indiscriminadamente, sem observância à metodologia

“Nem a existência de 726 mil pessoas abandonadas em verdadeiros charcos, que são os presídios, aplaca a opinião pública. Estamos à beira de um colapso. E é nesse contexto desesperador que nasce, de forma tímida, a proposta da Apac, uma alternativa viável para fazer de espaços de sofrimento um sinal de luz e esperança”, contou, recordando o surgimento do método, em São José dos Campos (SP), nos idos de 1970.

Com lucidez, o diretor executivo da FBAC ressaltou que as Apacs exigem uma comunidade comprometida para sua implantação. Elas enfrentam diariamente percalços para evitar que os centros de reintegração social permitam a entrada de armas, drogas, policiais, celulares e corrupção, para que as premissas sejam cumpridas e essa terapêutica penal não seja desvirtuada.

Juiz fala em evento
Segundo o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, as Apacs fizeram dele uma pessoa melhor, mais humana, compreensiva e tolerante

O juiz Luiz Carlos Rezende e Santos relatou que vê, com satisfação, que há muita indignação diante da injustiça e muita vontade de mudar. Ele disse que seu contato com a Apac determinou uma guinada radical em seu modo de pensar, agir e julgar, mostrando que não podemos nos acostumar com o atual estado de coisas.

Titular da Vara de Execuções Penais da Comarca de Belo Horizonte e coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) para assuntos relacionados às Apacs, ele falou do peso da responsabilidade de trabalhar com a execução penal. "Digo à minha equipe que não podemos descansar enquanto há um alvará de soltura a expedir. Vamos deixar aquela pessoa dormir na prisão?", indagou.

Traçando um histórico de alguns ganhos e do estreitamento da relação do Judiciário com as Apacs, ele lembrou que em 2001 o modelo se tornou uma política pública no âmbito do TJMG. “Em 2004, a Apac veio ao encontro da minha comarca. Naquela época, eu estava preocupado em endurecer as penas e reformar cadeias e tive um choque”, declarou.

Progressivamente, o Poder Executivo estadual encampou o projeto, a FBAC foi autorizada a celebrar convênios de manutenção e as unidades foram se espalhando pelas terras alterosas, pelo Brasil, pela América e pelos outros continentes, qualificando cada vez mais sua gestão, aprimorando-se e oferecendo opções para os reeducandos.

“Tive a alegria de conhecer pessoas que passaram pelas Apacs transformadas, revelando-se produtivas, felizes e transformadoras. Sou grato por esse aprendizado”, concluiu.

De pé, ex-detento fala em palco de auditório
Roberto de Carvalho contou sua trajetória de recuperação

A última fala de um dia intenso e enriquecedor não deixou por menos. Roberto Donizetti de Carvalho, com a informalidade justificada pelo apelido “Beto”, comoveu a plateia com seu testemunho. Condenado a 25 anos por latrocínio e assalto à mão armada, cumpriu sete anos na prisão convencional e sete numa Apac.

O contraste entre as celas imundas, com cheiro de carne podre, comida azeda, violência, humilhações e o quarto individual, a ausência de algemas e o trabalho não foi suficiente para reverter algumas de suas posturas. Mas a Jornada de Libertação com Cristo, elemento obrigatório da metodologia, foi um divisor de águas.

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Magistrados, promotores, agentes penitenciários e interessados aprofundaram o conhecimento da execução penal

“Percebi que condenei a minha mãe aos mesmos 25 anos da minha sentença, às mesmas humilhações, dores e sofrimentos. E ela, diferente de mim, que na infância pensava que ela era a mãe errada para mim, porque não podia me conceder os bens que eu ambicionava, não achava que eu era o filho errado, apesar dos meus erros. Nesse momento pedi perdão e decidi mudar de vida. Não foi fácil, mas aqui estou”, disse.

Pai de três filhos, ele voltou à Apac, depois de cumprir a pena, para trabalhar. Depois de 4 anos em Itaúna, tornou-se gerente de metodologia da FBAC e não parou mais. “Quero até o fim continuar a servir a essa missão. E digo a vocês que rezo todos os dias por todos os que se devotam às Apacs e pelos homens e mulheres nas prisões. Vocês não estão sozinhos”, concluiu.

 

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