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10/08/18 09:07

 

“Sempre que eu me arrumava, fazia escova no cabelo e pintava as unhas, ele dizia que eu estava procurando homem e me agredia. Se falava em separação era surra na certa. Fui me sufocando... Quando a gente se acostuma com a agressão, fica doente, é como se fosse um dependente químico ou um alcóolatra que precisa daquela droga para manter o relacionamento”. A história de Roberta* é a de centenas de milhares de mulheres que sofrem agressão. Só no Brasil tramita mais de um milhão de processos judiciais amparados pela Lei Maria da Penha, sendo quase 200 mil na Justiça de Minas.

“Cada nova agressão que a gente sofre é pior que a outra, começa com a verbal, depois vem a psicológica e a física...”, enumera a jovem, de 26 anos. A Lei Maria da Penha lista cinco formas mais comuns de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. O advogado Guilherme Fedosi, de uma entidade que acolhe mulheres vítimas de violência em Belo Horizonte, a Casa Sempre Viva, explica: “A violência de gênero ocorre em ciclos. Tem o desgaste da relação e o momento em que a violência física explode. Depois, no período de calmaria e de arrependimento, o parceiro pede desculpas e promete que não vai fazer aquilo novamente, para de beber, de usar droga, muitas vezes volta para a igreja, e a mulher acredita que ele mudou. O casal vive o período da lua de mel até ter um novo desgaste e as violências vão ficando piores. A cada vez que o ciclo roda, o tempo entre a fase boa e a fase ruim é menor e as agressões são mais graves”.

Roberta, que está acolhida na Casa, concorda com o advogado, acrescentando que suas duas filhas mais novas foram geradas em períodos de lua de mel. Nos primeiros anos de relacionamento, vivia bem com o marido. “De 2014 até agora, as agressões não pararam, foram inúmeras, denunciei várias vezes. A cada vez que a polícia levava meu marido, as agressões pioravam. Tenho diversas marcas pelo corpo, ele já me partiu os dentes e quebrou meus dois braços com o cabo de uma enxada. Nessa época, eu estava de resguardo, e fiquei 45 dias trancada dentro de casa, com os braços quebrados, sem atendimento médico”.

 

 

Roberta conta que queria se separar, mas não tinha para onde ir com as filhas, uma vez que morava com a família do marido desde a adolescência; agora, 11 anos depois, ela continua não tendo para onde ir, mas está confiante de que vai conseguir um trabalho e um lugar para viver com as três meninas. Na última ocorrência, o agressor juntou a família dentro do quarto e colocou fogo. “A polícia retirou as minhas filhas pela janela, eu tive queimaduras nos pés e ele foi preso em flagrante por tentativa de homicídio. As crianças estão muito abaladas e eu me sinto machucada sempre que me lembro, com medo de voltar lá para fora”.

O Mapa da Violência de 2015 situou o Brasil na 5ª pior posição no ranking de países com maior índice de homicídios de mulheres: 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres. Em uma década, entre 2003 e 2013, a quantidade de vítimas de homicídio aumentou de 3.937 para 4.762. Levando em consideração o crescimento da população feminina no período, houve um aumento de 8,8% na taxa de homicídios de mulheres. Segundo o Mapa, a maioria das vítimas são mulheres negras e pardas, na faixa etária entre 18 e 30 anos.

 

 

Com representação no Brasil, foi criada, em 2010, a ONU Mulheres – instituição internacional criada para buscar a igualdade de gênero e combater a violência. Segundo estudos realizados pela organização, um terço das mulheres enfrenta episódios de violência física ou sexual em suas vidas, sem esquecer que parte dessas agressões é praticada por parceiros íntimos ou outros parentes. Sofrem ainda mais aquelas discriminadas por sua etnia e condição social. Apesar dos esforços de combate à discriminação de gênero, as mulheres continuam sendo vítimas de violências múltiplas e tendo dificuldade de abordar e superar o problema em suas famílias e sociedades.

Para mudar a cultura da agressão um dos caminhos é conscientizar os homens agressores sobre as suas ações.

 

O TJMG tem parceria com o Instituto Albam, que promove grupos de reflexão com os homens agressores condenados pela Lei Maria da Penha e encaminhados pelos juízes dos juizados onde tramitam os processos enquadrados na norma. Eles participam de 12 a 16 encontros semanais de duas horas, momento em que têm a oportunidade de expor a situação que os levou até ali, ouvir outros agressores e interagir com os psicólogos que fazem a mediação. Nesse processo, os homens tomam consciência das violências que cometeram, o que resulta em um índice menor de reincidência entre os participantes das oficinas.

Segundo a juíza Flávia Birchal, antes da edição da Lei Maria da Penha, em 2006, se a violência contra a mulher envolvia ameaça e lesão considerada leve, a competência para examinar o caso era do Juizado Criminal, por se tratar de crimes de menor potencial ofensivo. Em 2004, quando atuava no Juizado Criminal, a magistrada, junto com promotores de justiça e psicólogos, firmou a parceria com o Instituto Albam. A participação nos grupos de reflexão era uma forma de transação penal, isto é, o denunciado ficava livre de responder a uma ação criminal, mas cumpria as penas alternativas definidas, desde que não tivesse cometido crime no prazo de cinco anos. “Quando fazíamos a audiência com os agressores depois dos grupos de reflexão, percebíamos que alguma coisa havia mudado. Notávamos pelo menos uma vontade de mudar, porque eles mostravam pensar de forma diferente sobre suas condutas. Acho esses grupos muito positivos, especialmente quando resolvem de fato o problema das partes, e não somente um processo”, diz a juíza.

A violência contra a mulher não é um fato novo. Pelo contrário, é tão antiga quanto a humanidade. O que é novo, e muito recente, é a preocupação com a superação dessa violência como condição necessária para a construção de uma sociedade mais pacífica e justa. Como disse Maurício*, 24 anos, “agredimos por causa da nossa ignorância, porque não consideramos o outro, não conseguimos admitir mais de uma possibilidade de ser feliz”.

 

Maurício usava entorpecentes desde os 10 anos, quando ele entrou para o tráfico, e sua namorada também fazia uso. Para o jovem, o que os uniu foi a droga: “Começamos um relacionamento quando eu estava com 20 anos e decidi chamá-la para morar comigo. Eu não tinha ninguém e, do meu ponto de vista machista, eu precisava de alguém para lavar, passar, cozinhar, mas tudo que começa mal tende a acabar mal”.

“A primeira agressão resultou num quebra-pau danado, eu não tinha o mínimo respeito por ela, era uma relação escravizadora, não era um relacionamento construído com respeito, amizade e carinho”. Maurício narra que, certa vez, ela saiu à noite e voltou no outro dia, drogada e exaltada. “Eu falei para ela ir embora, fiz bolinhas de papel higiênico, coloquei fogo e joguei nas coisas dela que estavam sobre a cama. Ela veio pra cima de mim, eu segurei os cabelos e os braços dela para que não me batesse. Não dei soco, nem chute, nem um tapa... Mas, querendo ou não, eu sou homem e ela é mais fraca fisicamente. Não que isso seja pouco, sei que deixa marcas emocionais na pessoa, e é por isso que estou aqui hoje. Mas todo esse transtorno tem sido muito bom pra mim, porque tem me revelado um potencial que eu não sabia que tinha, tem me trazido uma consciência que eu não tinha. Agora sei que um palavrão ou até uma vasilha que você deixa de lavar pode atingir o outro. Não devemos agredir alguém nem com palavras, quanto mais com agressão física”.

São esses relatos que fazem com que os psicólogos acreditem no trabalho que desenvolvem junto com os agressores. Segundo a psicóloga Rebeca Rohlfs, uma das pioneiras do Instituto Albam, no primeiro dia os homens chegam com muita raiva, à medida que participam das sessões, vão mudando de comportamento e maneira de pensar. Em mais de uma década de atuação, o Instituto Albam já atendeu mais de três mil homens agressores encaminhados pela Justiça de Minas.

Com um discurso parecido com o citado anteriormente, Fabiano*, 39 anos, reconhece: “Depois que passei a frequentar o grupo é que entendi que tudo começa a partir de um simples gesto ou de uma palavra, um palavrão é uma violência doméstica. Antes eu só queria falar, falar... Eu achava que sempre estava certo e nunca aceitava que podia errar. Aqui eu aprendi a escutar, ver o que a pessoa acha, aprendi a ser criticado e a não pensar que só eu sou o certo e a outra pessoa é errada”.

A história das agressões, de acordo com Fabiano, vem desde o começo do namoro: “Eu tinha muito ciúme porque ela era bem mais nova – 20 e poucos anos e eu tinha meus 35 – e ela gostava de sair. Então vieram as brigas. Eu tinha certeza que ela me traía, mas nunca peguei no flagrante, ela era esperta, mas eu achei mensagens no celular dela. Sou dependente químico, quando eu usava droga demais era pior, eu pensava que ela estava com outro homem e procurava marca de chupão no corpo dela. Um dia, no motel, por volta de cinco horas da manhã, ela acordou e falou que queria ir embora. Eu não quis deixar, segurei, puxei pelo cabelo, chutei e tampei a boca dela. Depois, saí e fiquei na rua esperando ela passar para xingar mais. Aí tinha uma viatura passando e ela me apontou para os policiais. Eles me abordaram e eu falei que ela era uma sem-vergonha, que não valia nada, que me traía. Então, ela registrou a ocorrência e fomos levados para a Delegacia de Mulheres. Depois disso ela me ligou e continuamos juntos, mesmo brigando muito. Cheguei a pegar os documentos dela e esconder para ela não ir embora. Ela foi à delegacia e falou que estava sendo mantida em cárcere privado. Mesmo assim, continuávamos juntos. Um outro dia, nós discutimos e eu dei um tapa no rosto dela, ela registrou outra ocorrência. Depois ela registrou uma quarta. Estou aqui por causa do ciúme doentio e porque eu pensava que era o dono dela”.

 

A cultura de violência contra a mulher é universal e fonte de preocupação de governos, sociedade civil e organismos internacionais. O problema é tão grave que, em 1999, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu a data de 25 de novembro o Dia Internacional de Combate à Violência Contra as Mulheres. Buscando solucionar o cenário adverso, em 2015, no mês de março em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o governo brasileiro publicou a Lei 13.104, que cria uma qualificadora para o crime de homicídio, o feminicídio, nos casos em que a motivação do crime seja o fato de a vítima ser mulher. Essa mesma legislação incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

À medida que se discute a violência de gênero e se criam mecanismos para combatê-la, as informações passam a circular e as mulheres tomam conhecimento dos seus direitos. O desconhecimento, porém, ainda é grande. “Antes de ser denunciado, eu escutava falar da Lei Maria da Penha, mas achava que era só nos casos mais graves, em que o cara ameaçava de morte ou matava a mulher”, afirma Fabiano. Roberta também contou que já viu várias amigas morrendo pelas mãos dos seus companheiros e que muitas mulheres que conhece ainda não denunciam as agressões que sofrem.

Em Belo Horizonte, há quatro Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A juíza Roberta Chaves Soares, do 4º Juizado de Violência Doméstica e Familiar, avalia que os grupos de reflexão têm alcançado bons resultados. Como não é possível encaminhar todos os agressores para os grupos de reflexão, porque são muitos casos, a magistrada utiliza como critério a frequência da violência, o fato de a vítima relatar que sofre com isso há muito tempo ou a circunstância de o agressor não ser primário. Ela explica que, para ser considerada doméstica e familiar, a violência deve ser proveniente de relações íntimas, seja entre parentes, casais ou pessoas próximas.

A assistente social Heloiza Batista, integrante da Equipe Multidisciplinar dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Belo Horizonte, informa que a equipe auxilia os juízes na compreensão do contexto familiar em que ocorre a situação de violência e as peculiaridades e necessidades de cada caso. Para isso, realiza atendimento às partes com o objetivo de fornecer informações, orientações e promover reflexões que possam contribuir para a mudança da cultura de violência.

 

Nos grupos de reflexão das mulheres agressoras encaminhadas pela Justiça ao Instituto Albam, nem todas respondem por processos dos juizados especializados em violência contra a mulher, ainda que tenham agredido mulheres do seu âmbito familiar. Isto porque a vítima pode optar pela denúncia pelas vias criminais comuns. No entanto, como a violência está impregnada na família, grande parte delas relata casos em que sofreu diversas formas de violência dos seus companheiros e, muitas vezes, é essa relação conturbada que leva uma mulher a agredir outra, como, por exemplo, a amante do companheiro ou a filha de um outro casamento do marido, como avalia a psicóloga Rebeca.

Esse é o caso de Ruth*, 37, que agrediu fisicamente a enteada depois de ter sofrido agressão psicológica e moral por vários anos de toda a família do marido, segundo ela, por ter condição financeira menos favorável. Ruth conta que as agressões culminaram no fim do relacionamento que durou oito anos. Ela trabalhava na empresa do ex-marido quando começaram a se relacionar. No primeiro ano, tudo eram flores. Depois da conquista, ele começou a agredi-la verbalmente. “Ele me falava que eu era favelada, que meu lugar, junto com minha filha, era no canil, que ele só considerava como esposas as duas mulheres com quem teve filhos. Antes estava tudo bem para ele e os filhos dele porque ele falava e eu me calava. A violência começou depois de um ano de namoro, quando ele se sentiu no poder. Ele dizia: ‘você não é nada, você não é ninguém, sua filha não é nada’. Era sempre assim... Já houve violência física, mas eu nunca o denunciei porque a gente se machucava na mesma proporção e ficava por isso mesmo. Na última agressão física, quando vi que ele ia me pegar mais forte, joguei a televisão nele para não tomar um murrão na cara. Agora ele pede perdão, só que não acredito mais, não volto para ele porque acho que aconteceria tudo de novo. Quando eu era gordinha, ele me falava que eu era barriguda, agora que emagreci 12 quilos, ele diz que sou magrela e doente. É assim que ele fala, mesmo estando separados. Hoje eu quero dar continuidade à minha vida sem ele”.

 

 

Ainda que figurem como rés nos processos a que respondem por violência física e sejam obrigadas pela Justiça a frequentar os grupos de reflexão de mulheres, elas se descobrem vítimas de múltiplas violências e, assim como os homens agressores que tomam consciência dos ciclos de violência em que estão inseridos, têm a oportunidade de repensar suas vidas, construir relações mais saudáveis e diminuir a cultura da violência.

Uma participante do grupo de reflexão, que chegou ali por ter espancado a patroa depois de levar um tapa, relatou que mais tarde se deu conta de que revidou como se estivesse batendo na amante do marido: “Eu não via a mulher que me deu o tapa na cara, eu via a cara da outra do meu marido”. Ela relata o sofrimento de conviver, na mesma casa, com o marido, que assumidamente tem outra mulher com a qual gasta todo o seu dinheiro e não contribui com as despesas dos filhos. É no grupo, que funciona como uma terapia, que ela descobre que está sofrendo um tipo muito comum de violência contra a mulher, a psicológica.

Para as mulheres que sofrem qualquer tipo de violência, o Governo Federal criou a Central de Atendimento à Mulher, o Disque 180, para orientação sobre direitos e sobre serviços públicos para a população feminina. As denúncias feitas a esse canal, que assegura o sigilo, são encaminhadas à Segurança Pública com cópia para o Ministério Público de cada estado para serem investigadas e para que os agressores sejam punidos.

*Nome fictício

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